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Quarta-feira, 7/9/2011 Pequenos combustíveis para leitores e escritores. Guilherme Pontes Coelho Já é o terceiro gole d'água que tomo enquanto rascunho este texto, que é sobre hábitos alimentares durante a escrita e a leitura. Talvez quebre minha tradição de comer frutas e vá providenciar algum chocolate. (Explicarei adiante por que estou prestes a mudar de hábito.) A ilustradora Wendy MacNaughton mantém croutons ao alho à mão enquanto trabalha, e os come como recompensa a cada boa ideia. Este costume a deixou curiosa quanto a de que tipo de snacks escritores se servem ou para produzir ou enquanto produzem. Taí um assunto que também me interessa - como acabam de testemunhar estes vinte Bis ao meu lado (minha filha os ganhou de presente, estavam sob minha custódia). MacNaughton, que tem um traço muito bem-humorado, pesquisou alguns escritores e ilustrou os combustíveis que utilizam. Walt Whitman me impressionou. Para o café da manhã, servia-se de ostras e carne vermelha. Pretendo emular esta experiência um dia, só para saber como é. Marcel Proust não me surpreendeu com sua quantidade excessiva de espressos. Não falo isso por conta das supostas propriedades soporíferas de sua obra, das quais ele, dada esta quantidade de café, estaria se defendendo, mas porque para produzir tanto, para escrever livros tão digressivos, parágrafos tão longos, períodos tão extensos, enfim, para produzir uma obra tão prolixa e, ainda assim, dar a impressão de que nada está fora do lugar, haja energia e concentração. Esperava mais requinte de Scott Fitzgerald. Maçã e carne enlatada, direto da lata? Truman Capote, ainda bem, não me decepcionou. Kafka bebia leite. O coquetel de Capote, o leite de Kafka. Mas além do que comemos e bebemos ou para escrever ou enquanto escrevemos, também o que comemos e bebemos ou para ler ou enquanto lemos é da mais absoluta importância. Veja, por exemplo, o caso de alguns de nossos digestores. Duanne Ribeiro, enquanto lê ou escreve, não come. Bebe café, apenas. Café mais para forte. Quando sente que precisa comer, ele para de ler ou escrever e vai se alimentar, mesmo: feijão, arroz, carne. Um estômago forrado desse jeito pode muita coisa, desde que o sujeito não ceda às tentações do torpor pós-prato cheio. Carla Ceres adota a dieta da castanha-do-pará. Uma providência inteligente. Enquanto lê, castanhas; enquanto escreve, água, mas só para quando o texto engasga, se não, passa sede numa boa. Inanição é muito frequente. Às vezes, absortos no mundo que criamos sobre o papel, fome e sede só se apresentam quanto a jornada termina, lá no ponto final. Há quem se alimente apenas de literatura, como Noah Mera e Marcelo Barbão. Literatura é o melhor dos alimentos, sem dúvida, e eles dois não comem nem bebem enquanto leem. Uma pena a literatura não dispor das colorias de que o corpo precisa. (Barbão, de vez em quando, quebra a rotina de faquir bebericando fernet.) Ao contrário de Mera e Barbão, há os casos de Fernanda Prates, Fabio Silvestre Cardoso e Ricardo de Mattos, que me inspiraram a experimentar Bis enquanto escrevo (para mim, não parece ter dado certo). Prates enxuga litros de refrigerante. Coca Light, apenas. Mattos destrói quilos de chocolate. Um chocólatra em eterno estado terminal, sem esperanças de cura. Já Silvestre Cardoso consegue, para os meus padrões pusilânimes, o impensável: unir o refrigerante da Prates ao chocolate do Mattos. Essa combinação, para mim, que não bebo refrigerantes e que mal consigo ingerir três Bis seguidos - pois já são a cota diária de doces -, é uma bomba. Eu não conseguiria ler ou escrever em jejum; tampouco tentaria uma ou outra coisa depois de misturar refrigerante com chocolate. Porque, como disse, tenho hábitos pusilânimes, fracotes mesmo, como acompanhantes na hora de ler e escrever. Bebo água, como frutas. Sabe, pratico esportes, como o que for que seja taxado de "saudável" e tenho uma indisposição natural para com doces e carboidratos. Em suma, uma péssima companhia, o pior dos comensais. Uma pessoa que se altera com apenas duas long necks e que, noutros contextos, mal consegue passar da primeira bola de sorvete não é exatamente quem um Anthony Bourdain gostaria de ter como parceiro de mesa. Porém, antes que você me tenha como um monótono não-assaltante-de-geladeiras, eu lhe digo que como besteiras, sim. Se há um veneno de que gosto e com o qual contamino meu corpo sem cerimônias, são essas batatas odiosas, como Pringles, Ruffles e, minha predileta, Doritos - que só há pouco tempo descobri não ser batata, mas uma tortilla revisitada. Continuo tratando por batata, para manter a tradição. Enfim, adoro essas "batatas". Devoro sacos inteiros sozinho, pondo abaixo toda alimentação saudável que possa ter ingerido. Não me importo que, por conta do sal desses veneninhos, minha pressão arterial pule de 11 por 7 para 14 por 9. Continuo comendo, uma "batata" atrás da outra, insaciavelmente. O problema é equacionar o vício das batatas venenosas com o hábito da leitura, ou da escrita. Porque comer e beber durante a leitura ou a escrita demandam uma logística particular. Veja o caso dos digestores citados. A maioria apenas bebe durante as atividades. Quem come (Ceres e os chocólatras), come lanchinhos de pequena dimensão, que vão da mão à boca, de forma prática e rápida. Lanchinhos que só precisam de uma mão, não requerem ferramentas e não deixam resíduos. A opção da castanha-do-pará é ainda mais interessante, porque o leitor (ou escritor) que faz uso dela poderá levar sua mão ao recipiente das castanhas, pinçar uma e, fisgado pelo parágrafo que lê (ou escreve, se for à mão), ele poderá segurar a castanha entre o polegar e o indicador até o ponto-parágrafo, sem que ela quebre ou, mais grave, derreta, mantendo assim toda a assepsia do corpo e do ambiente. Suponho que os chocólatras Prates, Silvestre Cardoso, Mattos e você aí já tenham lambuzado alguns livros, ou o teclado, ou o mouse. A logística de comer frutas é aquela coisa complicada que você já deve ter imaginado. Claro, é simples quando as frutas são maçãs, bananas, morangos, cerejas, amoras, uvas, pêras. Tudo complica, no entanto, quando é a vez de melões, melancias, lichias, kiwis, mangas, mamões, pinhas, abacates, mexericas. Estas exigem um tratamento especial, ou prévio às atividades literárias, quando são picotadas e armazenadas, ou concomitante às atividades, quando requerem o uso de duas mãos e algumas ferramentas. Só merecem tanto trabalho assim porque não há como dizer não à suculência de uma manga ou de um kiwi, principalmente nesta secura de Brasília, onde a umidade do ar pode chegar a inclementes 10%. Para tão baixa umidade, líquido, muito líquido. (Acabo de tomar meia garrafa d'água.) Mas mencionar líquidos me traz pesadelos. Depois que, acidentalmente, uma garrafa de isotônico molhou No fundo de um sonho, biografia de Chet Baker, que pânico, pavor, tremores convulsivos de ansiedade e angústia tomam conta de mim quando vejo um líquido, qualquer líquido, próximo a livros meus. Não só a livros, porque escrevo a lápis. Um copo de qualquer coisa perto dos meus manuscritos me deixa em estado petrificante de alerta máximo. (A garrafa d'água ao meu lado, depois de goles imodestos, foi devidamente tampada.) Essa combinação de comer, beber, ler e escrever me lembra Edmund Wilson. O homem lia e escrevia (à mão) como um louco, tendo à sua frente, sobre a mesa de seu escritório, uma bandeja cheia de sanduíches (de pepino, se não me engano) e algum álcool. A meu ver, um gênio multitarefa. Voltando ao problema que deixei em aberto, eu já tentei conciliar o vício nas batatas venenosas com o hábito da leitura. Sem fome suficiente para parar de ler e fazer uma refeição substancial, puxei um saco de Doritos para me acompanhar enquanto relia Ulysses. (Pensei em mentir, escolhendo um livro menos pedante, mas terei de ficar com os elementos da cena verídica, porque só assim ela fará sentido.) Me levantei do sofá para buscar o saco de veneno ao final do capítulo catorze: "Você precisa se levantar bem cedinho, seu pecador aí, se você quiser tapear o Deus Todopoderoso. Pfleeeep! Nem mais nem menos. Ele tem um xarope com um estimulante pra você, meu amigo, no bolso de trás dele. Experimente só." Assim na tradução da Bernardina da Silveira Pinheiro, pela editora Objetiva. O capítulo quinze, apesar de se passar na zona de bordéis, não é dos meus prediletos. Talvez isso tenha provocado a necessidade de estar acompanhado pelas tortillas venenosas. Esta edição do Ulysses tem 890 páginas e pesa, segundo minha mini-balança de cozinha, 1150kg. O capítulo quinze começa na página 469, praticamente no meio do volume. Ou seja, a não ser que eu tivesse mãos de Kareem Abdul-Jabbar, é impossível segurar este Ulysses com uma mão só. Um complicador descomunal se somado àquela viscosidade nojenta e deliciosa que as tortillas venenosas deixam nas pontas dos dedos. Pois bem, abri o saquinho das tortillas venenosas, comi algumas e voltei para o sofá. Pés no pufe, almofada no colo, Ulysses sobre ela. Tive que voltar à cozinha, para limpar a mão e trazer uma toalha de papel, porque os dedos já estavam sujos de tortillas venenosas. Não podia tocar no livro assim. Retornei à sala, sentei novamente no sofá, pés no pufe, Ulysses em cima da almofada sobre meu colo. Começo a ler. Páginas depois, vontade de tortillas venenosas. Para manter Ulysses aberto, uso o antebraço (o livro até range). Tortillas venenosas na mão direita, da mão à boca. Este movimento mais algumas vezes e tenho os dedos podres e a página perdida: ao buscar a toalha de papel, Ulysses se fechou. Dedos limpos, volto à posição inicial. Leio mais páginas, vontade de tortillas venenosas. Antebraço no livro, mão nas tortillas venenosas, tortillas na boca. Chupo os dedos, que permanecem lambuzados - e viro a página sem me dar conta: mancho o Ulysses de James Joyce, o romance mais importante do século XX. Fico puto comigo mesmo, pego o saquinho de tortillas venenosas para levá-lo à cozinha e ser grampeado e, me preparando para me levantar, vocifero alguns palavrões, mas eles só fazem aumentar minha ira: perdigotos temperados por tortillas venenosas mancham novamente o Ulysses de James Joyce, o romance mais importante do século XX. Estupefato, solto o saquinho de tortillas venenosas, que cai no pufe, e tento, com uma mão só, equilibrar e manter aberto o livro de 1150kg - caso as páginas se fechem, eu terei um teste de Rorschach feito de tortillas venenosas bem no meio do Ulysses de James Joyce. Saio correndo para salvar Ulysses do Rorschach de tortillas venenosas e piso no pufe, coberto de tortillas venenosas - minhas pisadas, uma esfarela as tortillas venenosas, outra as lança no ar, emporcalhando toda a sala de tortillas venenosas. Ulysses de James Joyce está bem. Mas a releitura está empacada há meses no capítulo quinze. Guilherme Pontes Coelho |
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