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Quarta-feira, 2/1/2002
Riobaldo
Paulo Polzonoff Jr

Daniela Mountian

Vou começar este texto com o maior clichê do mundo: ano novo, vida nova. Ah, vai, confessa que você deve ter pensado nisso quando o relógio deu meia-noite. Não se envergonhe, por mais inteligente que você for, é normal. Jung, aquele filho da mãe, deve ter uma boa teoria para isso. Como não sou discípulo de Freud nem nada, apenas repito o lugar-comum das areias de todo o Brasil (perdão se você mora no interior, mas é que só consigo lembrar de anos-novos na areia da praia). Ano-novo, pois, vida nova, pois.

Antes de qualquer coisa, um causo. Um causo literário, por assim dizer. Há quem o considere a tragédia extrema da família, mas eu o considero apenas um marco, assim uma espécie de divisor de águas entre o certo e o duvidoso. Aconteceu na noite de Ano-Novo mais relevante dos últimos mil anos: a de 1999 para 2000. Sim, eu sei que o século não mudou nesta data, e sim de 2000 para 2001, mas a mística dos três zeros estava por toda a parte.

Eu estava deitado tranqüilamente na rede da casa de praia, sentindo aquela brisa da noite do mar. Adoro aquilo. Odeio praia, com aqueles corpos se sobressaindo de biquínis vulgares (não adianta atacar minha masculinidade, senhores leitores), mas adoro aquela brisa do mar. O calor até que me fazia bem. Sem dizer que, volta e meia, eu ia até a praia, olhar as estrelas, as ondas, compor poemas que jamais escrevi, pensar na porra da vida que tomava um rumo indesejado. Pois deitado na rede eu lia Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. Vai ser muito patético se eu disse que é o melhor livro brasileiro do século 20 e quiçá um dos melhores da literatura mundial, e que assim seria reconhecido, não escrevêssemos numa língua periférica? Bem, agora á disse, não há como volta atrás. Ali lendo, sorvendo aquele desbunde lingüístico, eu também esperava uns parentes que passariam a noite conosco. A casa estava bastante calma para o horário razoavelmente avançado: oito da noite. Meu pai fazia churrasco, eu lia e bebia e fazia todo o esforço do mundo para não ficar bêbado, para continuar a leitura. Coisa rara: houve respeito e ninguém colocou músicas de mau-gosto, como é de costume. Até que.

Até que os parentes chegaram. Em duas caminhonetes e um carro. Chegaram com seus chapelões de rodeio. Chegaram gritando, dando abraços apertados demais e beijos babados. Foram estacionando seus carros na garagem e abrindo caminho por entre as comidas da ceia. E eu ali, na rede, abraçado ao Guimarães Rosa (outro ataque à minha masculinidade; pode bater que ela é forte...), começando a odiar a situação. E então, de repente, eu escuto. Não, não é Strauss. Nem é Cole Porter. Obviamente, isto está muitos degraus acima da escala evolutiva destes. Não era nem ao menos Caê ou Marisa Monte, travestidos de inteligência. Não era sequer o Roberto Carlos, que, numa última concessão, eu até suportaria. Era música sertaneja-brega mesmo. E num volume acima do recomendável pela Organização Mundial de Saúde, que nestes casos é de silêncio extremo.

Talvez motivado por um espírito de Riobaldo, levantei-me da rede e reclamei. Parece uma atitude normalíssima, mas numa família de descendentes de italianos isso é absurdo, porque se preza a felicidade (ainda que falsa) alheia, acima de tudo. O pedido para que abaixassem o volume de nada adiantou. O telefone tocava, mas ninguém conseguia falar nele porque um cantor desafinado qualquer gritava dos autofalantes do carro. Por meio de uma gambiarra, os filhos da mãe juntaram os autofalantes dos dois carros, o que tornou a situação impossível de se agüentar. Riobaldo, digo, eu, tomou dois goles de caipirinha e pediu mais uma vez que abaixassem. Num momento de descontração (que não lhe (me) é raro), sugeriu que colocassem o CD do Strauss. Ficou por isso mesmo. Até que Riobaldo levantou o bacamarte, ameaçadoramente, e se dirigiu, em cima de um cavalo de Dom Quixote, para o CD-player. O dono do barulho relutou, disse que a festa era dele também (argumento inteligentíssimo, não?). Ao que Riobaldo retrucou dizendo que o sertão era dele, empurrou o babaca da música sertaneja, pegou o CD e jogou-o na areia. Fez menção de ir pisar no disquinho, mas foi contido. Riobaldo estava feliz, naquela noite de Ano-Novo que acabara de estragar. Olhou para os lados: o silêncio. Recolheu o bacamarte, pegou seu livro novamente e foi para a rede, lê-lo.

Dois minutos mais tarde, novos apertos de mão, desta vez contidos. Feliz Ano-Novo daqui e dali, todos muito polidos e mentirosos. Os invasores fugiam da fúria literária de Riobaldo, às 23h30. Passaram o Ano-Novo lá deles na estrada, por certo comendo seu franguinho com farofa, enquanto Riobaldo, já um tanto esmorecido pela caipirinha, tentava dormir.

Pois é, este texto era para, na verdade, falar sobre as resoluções de Ano-Novo. Às vezes acontece isso: o texto que é para ser e não é. A história se impôs às minhas modestas pretensões para 2002. Ao contrário de todo mundo, eu quero é fumar. Não cigarro, mas um charuto bem bom, destes que se paga uma fortuna. Gosto besta, sô. Também não quero parar de beber. Só vou mesmo é mudar a marca e a idade de meu uísque, de um Red Label, 8 anos, para um Chivas, 12 anos. Amar vou continuar amando, quiçá com um pouco menos de poesia e um pouco mais de pragmatismo, como me ensina a vida neste momento. Vou escrever muito e até já cadastrei um blog para publicar as crônicas que escreverei diariamente. Vou ler Guerra e Paz, finalmente e de uma vez por todas, eu prometo. E vou reler Grande Sertão: Veredas (aliás, vou fazer isso agora mesmo), que é para ser Riobaldo de novo, quando precisar.

Paulo Polzonoff Jr
Curitiba, 2/1/2002

 

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