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Quinta-feira, 6/10/2011
Cinzas e sombras
Vicente Escudero

Passei a manhã ensolarada sentado na sala da Faculdade, acompanhando e anotando aulas de Direito Penal e Civil. Pela janela, enquanto algum professor definia conceitos sobre a aquisição da personalidade pela pessoa humana ou da teoria do crime, eu observava a movimentação de outros estudantes conversando nos corredores que ligavam os edifícios da Universidade ou compenetrados em salas de prédios vizinhos, com outros professores e conceitos, atrás de vidraças que castigavam meus olhos, refletindo o sol.

A primeira aula teve início no horário comum, às 8:10 da manhã, e foi seguida por outras três, separadas por intervalos de poucos minutos. Naquele dia, excepcionalmente, não haveria quinta aula. Por motivos que não consigo recordar, minha sala foi liberada às 11:30. Arrumei cadernos e livros dentro da mochila e caminhei até o prédio do Diretório Acadêmico para tirar cópias da carteira de habilitação enquanto via meus amigos se dispersarem na oportunidade de descanso antes das atividades vespertinas. Eu precisava dos xerox para me associar à loja da Blockbuster recém-inaugurada na rua onde morava. Durante o percurso, percebi duas estudantes conversando sobre um ataque terrorista contra os Estados Unidos. Não imaginei que o assunto tratava do presente.

Deixei o campus e caminhei até o ponto de ônibus na Rua da Consolação, onde a discussão sobre atentados e Estados Unidos continuava e se misturava à impaciência das pessoas com os atrasos do transporte público. No barulho dos motores a diesel desregulados acelerando na subida, entre as vozes dissonantes, identifiquei suspeitos: Bin Laden e Al Qaeda, além de locais: Washington e Nova Iorque. Até o momento da minha saída, não consegui montar uma história, impedido por uma timidez específica de estudantes universitários que não se interessam cegamente por um dos lados de causas políticas distantes do próprio cotidiano. Eu jamais questionaria o sujeito que aparentava estar mais informado sobre o assunto naquele local, falando sobre as consequências do ocorrido e da culpa e arrogância americanas; alguém vestindo uma bermuda tie dye, camiseta de Che Guevara suja de tinta e calçando havaianas. Temia tocar em um nervo muito sensível do articulista de calçada. Tinha certeza de que a última informação que conseguiria seria uma objetiva relação de causa e efeito, com autores e vítimas, locais e horários. Imaginava que a resposta poderia ser uma diatribe tão grande que acabaria perdendo o ônibus do meu itinerário e, pior ainda, o almoço.

Precisava de um informante neutro, mas fui surpreendido ao entrar num ônibus quase vazio, ocupado apenas por algumas cabeças balançando no ritmo da percussão urbana, a suspensão e suas molas tamborilando nos buracos do asfalto. Paguei a passagem e me sentei no banco atrás de um velho de cabelos brancos, com mais de sessenta anos.

Todos pareciam desinteressados com o presente. Perguntei ao homem à minha frente, discretamente, se ele sabia o que havia acontecido nos EUA, o assunto que todos estavam comentando. "Não." Ele então repetiu a pergunta ao cobrador que deu de ombros e continuou arrumando as notas no caixa. Minha curiosidade aumentava a cada semáforo cruzado.

O ônibus chegou à minha parada. Desci e caminhei dois quarteirões até chegar em casa, tentando reconstruir os acontecimentos do dia. Havia pouco movimento na Faculdade naquela manhã. Localizada nos limites do bairro de Higienópolis, escolhido como residência pela maioria dos imigrantes judeus que vieram para São Paulo desde meados do século XX, a Faculdade de Direito e os demais centros do Instituto Presbiteriano Mackenzie sempre foram locais onde quipás e judeus ortodoxos podiam ser vistos passando pelos arredores o dia todo. Naquele dia, não me recordava de grandes barbas, apenas de rostos lisos e cabeças descobertas.

Lembrei-me da internet da Universidade, disponível numa sala distante do prédio da Faculdade de Direito. Arrependi-me de não tê-la usado. A pressa é inimiga da curiosidade.

Enfim, casa. Abri o portão, subi a escada, fui até a cozinha e aqueci o almoço dentro do microondas. Sozinho, liguei a televisão e assisti em todas as emissoras imagens da CNN se repetindo exaustivamente, estáticas, com o notebook no colo, ligado à internet, a comida esfriando no prato sobre o sofá. Passei as três horas seguintes assistindo de todos os pontos cardeais de Nova Iorque a fumaça preta sendo soprada pelos prédios, o suicídio de pessoas presas nos andares isolados pela colisão dos aviões, até o momento que cada uma das torres foi sugada pelo solo. As explicações, duvidosas, só começaram a surgir no final da tarde. Um amigo me ligou dizendo que não compareceria a um aniversário à noite porque sua mãe estava assustada com o ataque da Al Qaeda ao World Trade Center. Mais tarde, antes de cantar parabéns, quase todos os presentes na festa concordaram que um ataque nuclear era iminente.

Existe um pronunciamento da Suprema Corte dos EUA, bastante conhecido, sobre o entendimento do que constituiria pornografia. Quando você a vê, acaba identificando-a. É uma definição imprecisa, equívoca e exclusivamente sensorial, mas na ausência de outra melhor, é suficiente para ser usada dentro de limites estabelecidos em um caso concreto. Quando as torres do World Trade Center foram atingidas pelos aviões pilotados pelos terroristas da Al Qaeda, imaginei que assistia o ato mais covarde e diabólico, a maior concretização do mal que veria em toda minha vida. Também não consegui definir precisamente, nos meses seguintes, a dimensão do mal praticado por Bin Laden e seus cúmplices. Eu era capaz de identificá-lo na indiferença de cada pronunciamento do líder da Al Qaeda, ameaçando os EUA, mas não conseguia defini-lo. Anos depois, Christopher Hitchens traduziu esse vazio contido na causa e seu efeito, a necessidade de aniquilar a rede terrorista e seu líder, Bin Laden, com uma analogia simples: seria como encontrar uma cobra próxima à cama de seu filho e não fazer nada.

Relativizar os atentados de 11 de setembro de 2001 comparando-os ao resultado negativo do imperialismo dos EUA, que teria causado muito mais mortes pelo mundo é, no mínimo, perverso. O principal alvo da Al Qaeda foi um conjunto de edifícios ocupado por empresas onde trabalhavam funcionários do mundo todo, localizado na cidade mais cosmopolita dos EUA. O que todas essas vítimas tinham em comum além de estarem no lugar errado, na hora errada? O inimigo da Al Qaeda sempre foi o conjunto de idéias das vítimas do atentado e não a arrogância representada pela arquitetura das torres, nem mesmo pela política externa dos EUA.

Hoje, as sombras do memorial construído para homenagear as vítimas do atentado escondem as dúvidas sobre a origem do mal causado há dez anos. O consolo contido no fluxo das águas correndo através das fundações dos antigos edifícios existe, mas desconhece as cinzas que carrega: restos de um mundo que se tornou muito pior desde 11 de setembro de 2001.

Vicente Escudero
Campinas, 6/10/2011

 

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