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Quarta-feira, 19/10/2011
E você, já disse 'não' hoje?
Adriana Baggio

Em 1982, início de carreira, Lulu Santos emplacava nas paradas de sucesso as músicas do álbum Tempos modernos. A canção-título falava de uma nova vida, um novo começo de era, "de gente fina, elegante e sincera/com habilidade/pra dizer mais sim do que não".

Era o final da ditadura. Os exilados estavam de volta. A liberdade, devolvida aos poucos. Se esse período de trevas, repressão e perda de direitos civis podia ser associado a alguns aspectos da época medieval, nada mais justo que chamar os novos tempos, menos despóticos e mais iluminados, de "modernos".

Depois de tanto medo e tantas proibições, havia um desejo louco de tirar o atraso: "Hoje o tempo voa, amor/escorre pelas mãos/mesmo sem se sentir/e não há tempo que volte, amor/vamos viver tudo que há pra viver/vamos nos permitir..."

Essa é a música do Lulu que eu mais gosto. Mas hoje, há quase 30 anos do seu lançamento, fico pensando se a mensagem primordial não teria perdido o sentido. Discordâncias teóricas à parte, vivemos em uma pós-modernidade. Já não precisamos brigar para viver tudo o que desejamos. O "permitir-se" foi apropriado pela retórica publicitária, como se precisássemos de justificativa para consumir mais.

Temos poder para tudo. Infelizmente, não nos tornamos mais finos, elegantes ou sinceros. Parece-me que a música, se fosse composta hoje, traria uma inversão: será que não está na hora de resgatar a habilidade de dizer mais "não" do que "sim"?

O "sim" já está previsto, pressuposto, é mais fácil. Muitas vezes, quando você vai escolher entre receber ou não a publicidade de alguma empresa por e-mail, o quadrinho do "sim" já está marcado. Esses dias precisei abrir uma conta corrente (não tive poder para dizer "não" a isso) e o contrato já trazia, assinalados, diversos produtos bancários que não eram do meu interesse. Desmarquei todos. O gerente precisou imprimir o contrato de novo e perdi bastante tempo com isso.

Ou seja, dizer "não" dá trabalho. As mães que o digam. A criança insiste, chora, berra. Haja disposição e força de vontade para manter a posição diante de uma situação dessas. Mas a se a negativa é justa, só fará bem. Os especialistas em educação infantil vivem alertando: as crianças estão recebendo poucos "nãos". Ficam sem saber como lidar com a frustração, na época em que isso deve ser aprendido. Mais tarde, serão confrontadas com frustrações bem maiores. Sofrerão mais, ou reagirão de forma destrutiva - para elas e para os outros. Não preciso citar exemplos. Leia agora a página policial de algum jornal e você vai encontrá-los.

Mesmo os adultos apreciam os limites. Meus alunos universitários, às vezes, são como crianças: insistem, mesmo sabendo que não têm razão. Pensa que é fácil manter um "não" para uma turma de 30, 40 jovens adultos? Também dá trabalho. Mas quando chegam os resultados das avaliações institucionais, sempre existe uma porcentagem deles, nada desprezível, que acredita que os professores deveriam ser mais exigentes...

Outra dificuldade em dizer "não" parece vir de uma desaprovação social. Pessoas que se posicionam contra algo já consolidado socialmente, mesmo que ofensivo ou prejudicial, acabam tachadas de chatas, encrenqueiras, mal-humoradas. Muitas deixam de se manifestar, de dar sua opinião, com medo dessas reações. E assim, percebemos que a liberdade, aparentemente reconquistada há quase 30 anos, não nos tornou tão livres assim.

Mesmo no consumo, você acha que é livre para escolher? As pesquisas de reclamações feitas ao Procon mostram um índice altíssimo de insatisfação com alguns segmentos específicos, como o de telefonia. Preços altos, serviço ruim e atendimento insatisfatório são enfiados goela abaixo do consumidor. A concorrência que existe entre as empresas é uma ilusão: sair de uma para a outra se trata, normalmente, de mera troca de problemas.

Porém, ainda que dizer "não" acarrete tantas dificuldades, ele é o poder que as pessoas têm para tentar mudar as coisas: não comprar tal marca, não votar naquele político, não concordar com as pequenas corrupções que beneficiam você. Sim, dizer "não" é abrir mão. Mas quem disse que a liberdade não tem um preço?

O "não" é o primeiro ato consciente que a criança aprende. É um manifesto de independência. Isso acontece por volta dos 18 meses. Até então, o bebê rejeita por meio de ações: se afasta, empurra, cospe, joga longe. Quando aprende o significado do meneio de cabeça, é um grande momento do seu desenvolvimento. Ele passa a se comunicar, a negociar com o outro, a se relacionar socialmente.

Todo esse processo é belamente explicado no livro O não e o sim: a gênese da comunicação humana, do médico e psicanalista austríaco René Spitz (Martins Fontes, 1998, 158 p.), publicado originalmente na década de 1950. O Dr. Spitz pesquisou o "movimento cefalogírico negativo" em bebês, desde o nascimento até o segundo ano de vida. A origem deste movimento - assim como o balançar da cabeça que significará o "sim" - está na alimentação, na amamentação.

Até os três meses de idade, esse movimento (de "fuçamento") tem a função de busca do seio para mamar. A partir daí, com o reforço da musculatura do pescoço e da percepção da mãe como um não-eu, o movimento serve para rejeitar o peito após a saciedade. Mas então a criança cresce, começa a conquistar mais autonomia, aprende a andar. Mexe aqui, quer ir até ali, ninguém segura o bebê: a não ser a mãe, o pai ou a pessoa responsável por seus cuidados.

Dessas pessoas, a criança começa a ouvir uma infinidade de "nãos", acompanhados do gesto correspondente: o menear da cabeça. Esse sujeito "negador" frustra as vontades da criança. Ao mesmo tempo, ele é seu objeto de amor. Portanto, ela se identifica com ele. Então, um belo dia, ao invés de empurrar a comida para longe, ela vai fazer como aprendeu com a mamãe (o papai, a tia da escolinha): vai dizer "não", vai balançar a cabecinha, trocando a ação pela comunicação.

Vale ressaltar o quanto o momento da aquisição do "não" semântico é importante para o desenvolvimento do bebê. O sucesso desse aprendizado aparecerá mais tarde, no modo com o adulto vai se relacionar com os momentos dolorosos da vida. É o que nos faz aprender com as experiências.

Ao contrário do que cantava Lulu Santos, não precisamos de muita habilidade para dizer "sim". Ele é da ordem do inconsciente, já nascemos com ele. O que nos torna sujeitos, conscientes e independentes, é o aprendizado do "não". Apesar de não estar sendo muito encorajado ultimamente, acho que vale a pena arriscar, dizendo "não" para quem precisa dele e também para quem o merece.

Só enquanto escrevo essa frase já me veio uma listinha de pessoas/marcas/atitudes que devem ganhar um sonoro #not. E você, pensou na sua?

Adriana Baggio
São Paulo, 19/10/2011

 

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