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Sexta-feira, 4/11/2011 A novíssima arquitetura da solidão Marta Barcellos Não sei aí onde você mora, mas o Leblon está em obras. Não é a Prefeitura, nem o governo do Estado, ninguém preocupado com a Copa. O fenômeno, que deve se repetir em outros lugares onde o metro quadrado tornou-se ouro, começa quando o feliz proprietário acorda, pensa na grana que vale hoje o seu apartamento e fica um pouco incrédulo. Será? Valerá mesmo tudo aquilo que o vizinho comentou, que o jornal noticiou? Na dúvida, raspa a poupança, tira as economias do fundo de investimento que não está rendendo nada, e vai aplicar no apartamento. Se ele ficar bem branquinho, com menos paredes e mais tomadas, será mais fácil de acreditar. É aí que tudo começa - e não termina mais. Os transtornos serão permanentes, pois os benefícios - reza a moderna arquitetura - são sempre passageiros. Logo outra modernização será necessária, especialmente depois de uma olhadela na sala nova do vizinho; quem será seu arquiteto? O bate-estaca de um inferniza o outro, que logo planeja a sua vingança: uma obra ainda mais devastadora. Entulho e mais entulho sairá do prédio em sacos carregados por trabalhadores que moram longe e não sabem para que tanta tomada. Mania de rico, tanto detalhe reluzente, perfeição que estraga logo. O entulho vai enchendo a caçamba na calçada, na medida em que as paredes lá de cima vão abaixo. As paredes parecem estar em baixa desde 1957, eu me espanto, lendo uma crônica daquele ano escrita por Rubem Braga, o inspirador deste modesto texto (haja modéstia, ao citar Rubem Braga; nem vou chamar o meu texto de crônica): "Um amigo meu quis reformar seu apartamento e chamou um arquiteto novo. O rapaz disse: 'Vamos tirar esta parede e também aquela; você ficará com uma sala ampla e cheia de luz. Esta porta podemos arrancar; para que porta aqui? E esta outra parede vamos substituir por vidro; a casa ficará mais clara e mais alegre'. E meu amigo tinha um ar feliz. Eu estava bebendo a um canto, e fiquei em silêncio. Pensei nas casinhas que vira na revista e na reforma que meu amigo ia fazer em seu velho apartamento. E cheguei à conclusão de que estou velho mesmo. Porque a casa que eu não tenho, eu a quero cercada de muros altos, e quero as paredes bem grossas e quero muitas paredes, e dentro da casa muitas portas com trincos e trancas; e um quarto bem escuro para esconder meus segredos e outro para esconder minha solidão." Fico pensando se Rubem Braga já imaginava que a solidão se tornaria tão démodé, agora que todo mundo tem centenas de amigos no Facebook. De qualquer forma, as paredes continuaram vindo abaixo desde aquele tempo, dependendo do dinheiro do brasileiro para contratar o arquiteto novo. Com as paredes, vão-se as portas e os trincos; e mesmo para o banheiro com tranca há quem leve o celular. Mas saiamos do banheiro modernizado (existem boxes sem porta, Rubem, juro!) e voltemos às calçadas. Ao entulho que um dia foi parede. De madrugada, há que se sumir com os vestígios daquilo que um dia guardou a solidão, e é nessa hora que aparecem os caminhões para trocar as caçambas abarrotadas. O caminhão se faz anunciar balançando suas partes soltas e metálicas, que irão içar a caçamba. No seu sono você pensa: não, não vou acordar desta vez. Não, não vou odiar o feliz proprietário que inferniza o seu vizinho durante o dia e todo o quarteirão durante a noite. Ele precisa quebrar as paredes, coitado. Não tem segredos. É apenas o começo, porque a operação pode durar dezenas de intermináveis minutos metálicos. E se repetirá na caçamba da calçada em frente, dali a uma hora. Você se levanta e vai para a sala. Acha um canto e só não bebe porque são três da madrugada. Pensa na reforma que não vai fazer e na silenciosa companhia de Rubem Braga, arquiteto das palavras, finalizando A casa: "Pode haver uma janela alta de onde eu veja o céu e o mar, mas deve haver um canto bem sossegado em que eu possa ficar sozinho, quieto, pensando minhas coisas, um canto sossegado onde um dia eu possa morrer. A mocidade pode viver nessas alegres barracas de cimento, nós precisamos de sólidas fortalezas; a casa deve ser antes de tudo o asilo inviolável do cidadão triste; onde ele possa bradar, sem medo nem vergonha, o nome de sua amada: Joana, JOANA! - certo de que ninguém ouvirá; casa é o lugar de andar nu de corpo e de alma, e sítio para falar sozinho. Onde eu, que não sei desenhar, possa levar dias tentando traçar na parede o perfil de minha amada, sem que ninguém veja e sorria; onde eu, que não sei fazer versos, possa improvisar canções em alta voz para o meu amor; onde eu, que não tenho crença, possa rezar a divindades ocultas, que são apenas minhas. Casa deve ser a preparação para o segredo maior do túmulo." Termino de ler a crônica intrigada: onde estão as pessoas tristes, gritando Joana, JOANA!? Onde elas terão se escondido para escrever versos ridículos e andar nuas, se já não há paredes grossas? Talvez tenham aprendido a esconder seus segredos fora dos quartos claros e envidraçados - e eu, que estou velha mesmo, por força da nostalgia tente em vão encontrá-las nos lugares de antes. Ou talvez elas estejam todas medicadas, e não fiquem mais tristes. Por isso os quartos escuros tornaram-se desnecessários. Pensando bem, Rubem, vou beber alguma coisa, no meu canto sólido e inviolável, mesmo sendo três da madrugada. Marta Barcellos |
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