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Terça-feira, 6/12/2011 Marcel Proust e o tempo reencontrado Jardel Dias Cavalcanti Com o romance Em Busca do Tempo Perdido (À la Recherche du Temps Perdu, no seu título original), Marcel Proust constrói, em sete volumes, um dos maiores monumentos literários do ocidente. No seu romance o autor perpassa, acima de tudo, a vida interior, as sensações, as paixões, sentimentos e emoções do narrador e demais personagens, todos implacavelmente analisados pelo escritor. Um dos aspectos mais revolucionários na elaboração de Em Busca do Tempo Perdido é o uso que Proust faz da memória involuntária para a construção do seu romance. Para Proust não existe forma de manter a constância do EU se não através da memória. Pois se o tempo destrói, com certeza a memória conserva. Para o escritor tudo está no pretérito, sendo reencontrado e salvo do aniquilamento pelas potências recriadoras da memória. Os momentos mais intensos da vida passaram, desapareceram no passado. O romance proustiano quer nos dizer que esses momentos podem ser indestrutíveis se um incidente fortuito (um barulho, um perfume, uma melodia) reanimar esse passado. Diz Proust em O Tempo Reencontrado: "Tal nome lido num livro de outrora contém entre suas sílabas o vento rápido e o sol brilhante que havia quando líamos. Na menor sensação produzida pelo mais simples alimento, pelo cheiro do café, reencontramos essa vaga experiência de um belo tempo que constantemente nos sorria quando o dia estava ainda intacto e pleno, na incerteza do céu matinal. Uma hora é um vazo cheio de perfumes, de sons, de momentos, de humores variados, de climas". No seu livro Contre Saint Beuve, Proust afirma que as "impressões passadas" formam a "única matéria da sua arte". Diz ainda: "parte do meu livro é uma parte da minha vida de que me havia esquecido e que, de repente, reencontro ao comer um pouco de madaleine mergulhada no chá". Podemos assim ver Em Busca do Tempo Perdido como a reconstituição do passado pala memória involuntária. Em carta a Louis de Robert (julho de 1913), Proust comenta sua teoria sobre a memória involuntária: "Como isso nunca nos é revelado pela inteligência, temos que tentar captá-lo de algum modo nas profundezas de nosso inconsciente; por exemplo, aquele gosto de chá que não reconheci imediatamente e no qual descobri os jardins de Combray - mas não se trata em absoluto de um detalhe minuciosamente observado, mas de toda uma teoria da memória e do conhecimento (pelo menos, é o que pretendo) não formulada em termos lógicos." Para Proust é a memória involuntária que liberará o que há de único e qualitativo em nossas vidas. Mas é preciso fixar esses momentos recuperados de modo duradouro e afirmar, enfim, sua permanência. O único meio de fixar essas impressões autênticas, acredita o romancista, é através da obra de arte. O escritor torna-se, então, um homem de métier, um artesão. Proust usará a escrita, diz Walter Benjamim, como uma rede na qual colherá as lembranças nas águas profundas da memória, salvando-as da dispersão do "eu" no tempo perdido. Salvar da destruição, pelo tempo, essa experiência de vida recuperada através da lembrança é a tarefa que Proust se propõe realizar. Rilke pensava da mesma forma, ao dizer que "talvez criar não seja nada mais do que lembrar profundamente". Quem não conhece a tão famosa frase de Proust que define claramente seu objetivo? "Parte do meu livro é uma parte da minha vida de que me havia esquecido e que, de repente, reencontro ao comer um pouco de madaleine mergulhada no chá". É nessa frase que se revela o tema básico da obra de Proust: a memória. Não a memória comum, produto da nossa inteligência, e que a um mínimo esforço nos restitui fatos já passados, dependendo de nossa vontade, como se fosse apenas um simples arquivo que apresenta apenas datas, fatos, e nomes. Mas e quanto às sensações que experimentamos no passado e já habitam a nossa consciência? Tais sensações jazem mais fundo e só são despertadas pelo que Proust denominou memória involuntária: é a que não depende de nosso esforço consciente de recordar, que está adormecida em nós e que um fato qualquer pode fazer subir à consciência. A memória involuntária - afloramento ao nível consciente de determinada recordação a partir de uma sensação semelhante a outra experimentada anteriormente - aparece bem no início do livro de Proust. em No Caminho de Swann, o narrador redescobre, num biscoito e numa xícara de chá, o gosto dos mesmos alimentos, ingeridos na infância longínqua, e essa sensação gustativa faz com que lhe volte, com a força da vida, a lembrança de Combray. O romance como construção do edifício das recordações, trazidas pela sublime experiência da memória involuntária: "mas, quando nada subsiste de um passado antigo, depois da morte dos seres, depois da destruição das coisas, sozinhos, mais frágeis, porém mais vivazes, mais imateriais, mais persistentes, mais afáveis, o aroma e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, chamando-se, ouvindo, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, levando sem se submeterem, sobre suas gotículas quase impalpáveis, o imenso edifício das recordações". Não tem outra importância o processo da memória involuntária senão a recuperação do tempo perdido. Tempo que não existe mais em nós, que não pode ser retomado por um processo racional, mas que apesar de continuar a viver oculto, pode ser revelado num sabor, numa flor, numa árvore, num calçamento irregular ou nas torres de uma igreja, etc. O tema da memória involuntária é retomado em várias passagens, seja na forma de sensações auditivas (Swann, ouvindo a sonata de Vinteuil, quando Odette já o despreza, sente voltar o tempo em que era amado por ela), cinéticas (o herói descendo a escada de sua casa ao lado do amigo, Robert de Saint Loup, tem a visão das noites alegres em que ambos faziam idêntico movimento quando saiam para jantar), olfativas (o cheiro da lenha queimando na lareira traz-lhe de volta frias tardes de Doncières e Combray). Através de uma série de analogias a memória involuntária põe em relação uma sensação presente e outra passada no fenômeno psicológico da recordação. Trata-se de uma associação inconsciente entre determinadas experiências sensoriais e o contexto espaço-temporal-afetivo em que estas se verificaram, contexto que a repetição da mesma experiência é capaz de fazer aflorar ao consciente, desencadeando, à revelia do sujeito, um mecanismo da memória bem diverso daquele que a vontade e a inteligência põem em ação. Nessa experiência, o objeto estimulador da sensação se apresenta como portador de um enigma e ao mesmo tempo parece gerar um estado de espírito que não é proporcional à sua causa, caracterizado por uma intensa alegria e a certeza intuitiva de libertação das contingências cotidianas. Vale dar ao leitor, agora, o prazer da maravilhosa descrição de Proust sobre isso, mesmo ocupando grande parte deste artigo, e que seja esse prazer que o leve a comprar e ler Proust: "Levei à boca uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço de madaleine. Mas no mesmo instante em que esse gole, misturado com os farelos do biscoito, tocou meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem a noção de sua causa. Rapidamente se me tornaram indiferentes as vicissitudes da minha vida, inofensivos os seu desastres, ilusória a sua brevidade, da mesma forma como opera o amor, enchendo-me de uma essência preciosa; ou antes, essa essência não estava em mim, ela era eu. Já não me sentia medíocre, contingente, mortal. De onde poderia ter vindo essa alegria poderosa? Sentia que estava ligada ao gosto do chá e do biscoito, mas ultrapassava-o infinitamente, não deveria ser da mesma espécie. De onde vinha?(...) E de súbito a lembrança me apareceu. Aquele gosto era o do pedacinho de madaleine que minha tia Léonie me dava aos domingos de manhã em Combray (porque nesse dia eu não saía antes da hora da missa), quando ia dar-lhe bom dia no seu quarto, depois de mergulhá-lo em uma infusão de chá ou de tília.(...) E logo que reconheci o gosto do pedaço da madeleine mergulhado no chá que me dava minha tia (embora não soubesse ainda e devesse deixar para muito mais tarde a descoberta de por que essa lembrança me fazia tão feliz), tão logo a velha casa cinzenta que dava para a rua, onde estava o quarto dela, veio como um cenário de teatro se colar ao pequeno pavilhão, que dava para o jardim, construído pela família nos fundos (o lanço truncado que era o único que recordara até então); e com a casa, a cidade, da manhã à noite e em todos os tempos, a praça para onde me mandavam antes do almoço, as ruas aonde eu ia correr, os caminhos por onde se passeava quando fazia bom tempo. E como nesse jogo em que os japoneses se divertem mergulhando num jarro de porcelana cheio de água, pequeninos pedaços de papel até então indistintos que, mal são mergulhados, se estiram, se contorcem, se colorem, se diferenciam, tornando-se flores, casas, pessoas consistentes e reconhecíveis, assim agora todas as flores do nosso jardim e as do parque do Sr. Swann, e as ninféias de Vivonne, e a boa gente da aldeia e suas pequenas residências, e a igreja, e toda Combray e suas redondezas, tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, de minha xícara de chá." (No Caminho de Swann). Como afirma Edmund Wilson, o simbolismo, a partir da redescoberta do platonismo por Baudelaire, coloca no centro da reflexão poética o estabelecimento de correspondências entre o mundo sensível e uma realidade espiritual, que só o poeta é capaz de atingir pelo verso criador. Proust, o último elo da corrente simbolista, transporta para o romance essa concepção e faz dela o fio condutor da narrativa que se desenvolve como uma ascese ao intemporal, e, portanto, ao ideal, pelo estilo, de uma experiência de vida realizada no plano material. O presente para Proust não existe. O único presente de sua obra está naquele momento privilegiado que fecha O Tempo Reencontrado, nesse ponto após o qual nada mais existe a não ser o princípio do livro que se acabou de ler. Diz Proust em O Tempo Reencontrado: "A verdadeira vida, a vida enfim redescoberta e iluminada, a única vida, portanto, realmente vivida, é a literatura". Jardel Dias Cavalcanti |
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