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Terça-feira, 20/12/2011 Picasso e As Senhoritas de Avignon (Parte I) Jardel Dias Cavalcanti Na origem do quadro encontra-se uma recordação da infância de Picasso, vivida em Barcelona. O tema do quadro é o bordel de Avignon, nome de uma rua de Barcelona onde havia um prostíbulo muito conhecido. O título atual da tela foi dado muitos anos depois de concluída, por André Salmon. Quando no princípio de 1907 o artista começou a trabalhar na tela, os seus amigos a chamavam mais cruamente de O Bordel de Avignon. O destino da tela foi bastante curioso. Durante muitos anos ela só foi conhecida pelos artistas que freqüentavam o atelier de Picasso. Quando, no fim de 1907, Braque foi colocado diante da tela ele se disse convencido de que pintar daquela forma equivaleria a "beber gasolina para cuspir fogo!" Ficou chocado, mas também agitado como nunca, e depois de 1907 buscou soluções bastante próximas das que Picasso acabava de inventar. Outra curiosidade é que esta tela, hoje universalmente conhecida, só foi reproduzida pela primeira vez em 1925, na revista Révolution Surréaliste, e apresentada ao público em 1937, no Petit Palais, quando da Exposição Universal de Paris. Nem o próprio Picasso, talvez, estivesse pronto para aceitar as liberdades que tomou, preferindo, então, guardá-la longe dos olhos do público por muitos anos. Enquanto trabalhava na tela, Picasso entrou em contato com a escultura africana. O rosto como máscara na extrema esquerda, e, sobretudo, os rostos violentamente distorcidos e retalhados das duas figuras da direita são resultado do impacto que essa escultura exerceu sobre ele. Em três dos cinco rostos da tela vemos um artifício: os olhos estão de frente e os narizes de perfil. Não é uma simples estilização, mas algo diferente que se processa ali, mais conceitual: as coisas são dissociadas para satisfazer uma exigência da mente. As Senhoritas de Avignon combina, na verdade, estilos absolutamente diferentes dentro da mesma imagem: as três mulheres à esquerda têm os rostos moldados segundo antigas esculturas ibéricas, enquanto os traços das outras provêm de máscaras tribais africanas. Esta experiência com a arte negra sem dúvida incitou Picasso a estilizar as formas naturais, até atingir algo apenas sonhado por Cézanne, uma geometrização rigorosa, e por fim, uma deformação radical. Mas não se pode dizer que foi unicamente a experiência com a arte negra que produziu esta orientação da pintura de Picasso. Ele fez uso dessa cultura que em parte aceitou, em parte impôs, na medida em que encontrou nessa cultura, ou na interpretação dela, a confirmação do que procurava. Portanto, não foi a arte exótica que "inspirou" Picasso na criação do quadro, não foi a arte negra que orientou seu estilo, mas foi uma visão analítica pessoal que o fez voltar-se para uma exploração particular dessa arte. Aliás, a arte negra atua apenas mais diretamente sobre as feições de duas personagens à direita, ao passo que é na visão do conjunto que se manifesta o espírito novo da arte de Picasso. As primeiras obras cubistas de Picasso relacionam-se a uma série de circunstâncias culturais e plásticas que naquele momento o inquietavam. Antes de tudo, seguiam o princípio de Cézanne, que preconizava a volta às formas da pura geometria, do cone e do cilindro. Cézanne havia produzido uma revolução simplesmente por se concentrar num problema formal, a realização do espaço pela justaposição de áreas de cor pura. O mais forte contato de Picasso com Cézanne foi durante o Salão de Outono de 1907, quando houve a exposição retrospectiva do mestre de Aix en Provence. Os jovens Picasso e Braque, com aproximadamente 25 anos, juntos, ali permaneceram absolutamente comovidos com a obra de Cézanne. E a influência das banhistas de Cézanne sobre Picasso será óbvia, como se pode perceber já na figura abaixo, pintad por Cézanne. Segundo Nicolau Sevcencko, no seu livro O Renascimento, com os fundamentos da perspectiva renascentista, institui-se a visão fixa e monocular. Mas esta é apenas uma entre outras possibilidades, não sendo a perspectiva linear absolutamente correspondente da complexidade fisiológica da visão humana. A visão humana é bifocal e não monocular, sendo ainda dinâmica, formando imagens através de movimentos constantes, e não fixa, e devido ao formato esferóide do globo ocular, percebe a realidade através de planos curvos e não retilíneos, como na perspectiva geométrica. Picasso questionou este sistema ao demonstrar que, apesar do caráter matemático e racional, tratava-se de um método artificial que acabou criando para o olhar ocidental uma armadura. Em As Senhoritas de Avignon temos um novo enfoque do problema da representação dos volumes tridimensionais numa superfície plana. É aí que reside a originalidade deste quadro de Picasso. Agora, é como se Picasso tivesse andado 180 graus ao redor do modelo e tivesse sintetizado suas sucessivas impressões numa única imagem. Adotou a hipótese de um mundo com qualidades espaciais múltiplas, em que o ponto de vista varia segundo consideramos as partes com um só olhar, de perto ou de longe, e sucessivamente; de um mundo em que a unidade teórica não é dada por uma estrutura única do pensamento. Severini explica: "Os objetos eram seccionados anatomicamente para que sua aparência visível se mostrasse uma vez em perspectiva e ao mesmo tempo de perfil, a seguir numa posição de frente em projeção vertical e depois na sua espessura, de acordo com a projeção horizontal". Picasso praticamente esculpia a realidade no espaço plano. Como ele mesmo disse: "Esta pintura, bastaria recortá-la, não sendo as cores, no fim das contas, mais do que indicações das diferentes perspectivas, dos planos inclinados de um lado ou do outro, e depois agrupá-los, segundo as indicações dadas pela cor, para nos encontrarmos em presença de uma escultura. Jardel Dias Cavalcanti |
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