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Terça-feira, 3/1/2012 Encontros (e desencontros) com Daniel Piza Julio Daio Borges Fernando Pessoa * Ouvi falar do Daniel Piza na época do Waaal (1996). Lembro, particularmente, do Roda Vida com Paulo Francis, em que ele dizia que o Daniel tinha 26 anos e, como Schopenhauer, já estava "cansado da vida". Logo depois, quando o Francis morreu (1997), eu trabalhava, como estagiário, numa consultoria que assinava a Gazeta Mercantil. E acabei lendo o necrológico, que o Daniel fez para o Francis, no jornal. Fiquei tão emocionado com o que ele escreveu que tomei coragem e enviei um fax, comentando o texto. O Daniel me surpreendeu quando respondeu por e-mail. Eu nunca tinha recebido o e-mail de uma "personalidade" antes. Começamos nossa correspondência aí, com um pedido meu de coisas do Francis para ler, já que estava me sentindo órfão. O Daniel me passou a lista dos livros dele, comentando cada título. * O "Caderno Fim de Semana", que o Daniel editava, saía às sextas-feiras e eu esperava até o fim do expediente para poder surrupiá-lo do escritório e levá-lo para casa. Era um time de estrelas, que o Daniel comandava, e acho que nunca mais houve outro igual, no jornalismo cultural impresso brasileiro. Era a Sonia Nolasco de Nova York, era o Ivan Lessa de Londres, o Luís Antônio Giron fazendo reportagens, o Sergio Vilas-Boas fazendo perfis, o Marcelo Rezende em Paris, o Gabriel Priolli sobre televisão... (entre tantos outros) E o Daniel inaugurando a coluna Sinopse, arranjando tempo para visitar exposições, como uma de autorretratos do Rembrandt na National Gallery, e fazendo matérias de capa, e especiais como o de 30 anos do AI-5. O "Fim de Semana", não resta dúvida, ficou para a história, como a revista Senhor, nos anos 50, o Pasquim, no anos 60, a Realidade, nos anos 70 etc. * Quando escrevi "A Poli como Ela é...", mandei para ele, que me respondeu com uma mensagem intitulada "polivalência". Quando me envolvi numa flame war na empresa, usei um elogio dele para me defender, embora o contexto fosse outro, e me arrependi amargamente. Depois escrevi uma longa carta pedindo desculpas. E o Daniel me respondeu: "Feel in peace, man... Você tem grandeza". Eu tinha sérias dúvidas vocacionais, lembro que comprei o livro de cartas do Euclides da Cunha que ele resenhou, e me sentia na mesma posição que o autor d'Os Sertões (entre a engenharia e a escrita). Pedi uma opinião ao Daniel, mas ele nunca tomou partido ― o que me chateou na época, mas que hoje vejo como uma atitude reponsável: ele não me conhecia tanto, a ponto de se envolver numa decisão. Uma vez me disse que eu "romantizava demais a profissão" (de jornalista), talvez querendo dizer que fosse muito mais difícil do que parecia. * Em 2000, eu já tinha dois anos de "colunista independente" (J.D. Borges), já tinha um site desde 1999 (jdborges.com.br) e o Daniel, finalmente, me citou na Sinopse, ao lado de um certo "Paulo Polzonoff" e de um "Ulisses Jung" (do qual nunca mais ouvi falar). Ele nos classificava como "leitores-críticos", mais do que meros leitores, e profetizava que não faríamos feio numa publicação impressa. Meses depois, quando mudou da Gazeta de volta para o Estadão, enviou um e-mail, com uma lista seus principais leitores ― tive a cara de pau de incluir essa lista no meu mailing. Graças a esse ato de spam, conheci o Eduardo Carvalho, que se tornou Colunista do Digestivo (e um dos meus melhores amigos), e, logicamente, o Polzonoff, que passou a me enviar seus textos. Para eles, e também para o Fabio Danesi, o Rafael Lima e o Lisandro Gaertner, inagurei a seção "autores novos", ainda no meu velho site. * Em 2003, o Daniel lançou Jornalismo Cultural, pela Contexto, e o Digestivo estava lá, junto com o site Agulha (que havia me entrevistado). Para mim, foi uma espécie de consagração. O editor do histórico "Fim de Semana", que eu lera com sofreguidão, nos colocava no fim de uma linhagem que, justamente, passava pela Senhor, pela Diners, pela Bravo! e por tantas publicações mais tradicionais do que nós (o Digestivo havia recém completado três anos). Na mesma época, conversei, pela primeira vez, com o Daniel por telefone, direto da redação do Estadão ― e nosso assunto, óbvio, foi o "Fim de Semana". Ele me contou que havia encadernado recentemente sua coleção e que tinha um projeto de salvar o caderno, transformando-o em revista (acabou não vingando). * 2003, ainda, foi o ano em que eu montei um projeto de revista impressa para o Digestivo. E o Daniel foi muito solícito. Lembro-me de encontrá-lo em Higienópolis, e de passarmos na padaria Benjamin Abrahão ― quando ele colocou, à minha disposição, toda a sua coleção de revistas, incluindo Diners e Senhor... Infeliz ou felizmente, não tive coragem de ir adiante. Concluí ― como já disse antes ― que a revista seria tão dispendiosa, mas tão dispendiosa que, se fracassasse, seria o fim do Digestivo Cultural (inclusive do site). No ano seguinte, contudo, fui chamado pelo pessoal da revista GV-Executivo, para editar um caderno do Digestivo lá, e pude retribuir a generosidade do Daniel, convidando-o para colaborar (e ser, naturalmente, remunerado). * Havia uma linha divisória entre mim e o Daniel Piza, e ela foi a causa de muitos dos nossos desentendimentos. Por causa de uma diferença de apenas quatro anos (ele é de 1970, eu sou de 1974), fomos para mundos diferentes, profissionalmente, embora o jornalismo cultural nos aproximasse. Ele fez toda uma carreira, brilhante, em jornal, e não conseguia aceitar que um jornalista escrevesse "de graça", como fazemos na internet desde os primórdios. Só aceitou fazer o blog, por exemplo, quando conseguiu incluí-lo num pacote de remuneração do jornal. E resistiu, o quanto pôde, às redes sociais. Convidei-o para o Orkut, ainda em 2004, e ele comparou o site ao quadro de avisos do Estadão. Sobre o Twitter, uma vez, me mandou uma mensagem, pensando em processar um fake que reproduzira seus aforismos sem autorização. * Ainda publiquei no "Link", a convite do Alexandre Matias, escrevendo sobre a Flip e a "nova literatura" que surgia na internet. Ficou legal, mas era um trabalho insano, para um pagamento "simbólico". De qualquer forma, me tornei colunista da GV-executivo, que pagava bem e que, coincidência ou não, me levou a escrever sobre negócios na internet, na mesma medida em que meus interesses se dirigiam para o empreendedorismo. Ainda chamei o Daniel para dar um curso no Chakras, com quem tínhamos uma parceria, e foi divertido. Eram poucos alunos, incluindo o Miguel e a Fabiana, donos do espaço, mas, durante o jantar, o papo fluía livremente, para os assuntos mais variados. Chamei o Daniel, também, para evento do Digestivo na Casa Mário de Andrade, mas acho que ele não gostou de ser incluído na mesa "Blogs de Jornalistas"... * Sempre achei que o Daniel publicava demais e ele mesmo fazia gozação disso, quando, ao convidar para mais um lançamento, comentava: "É o último que vou lançar neste ano". Na época do "Fim de Semana", me disse, ou li em algum lugar (não me lembro agora), que insistia para que o Francis "nos deixasse mais livros". O mesmo Francis se confessou "grávido de três", antes de falecer, mas não os concluiu. Ninguém poderia imaginar, contudo, que a velocidade em publicar do Daniel tinha sua razão de ser: ele não teria o mesmo tempo de vida. Hoje, é um consolo saber que há livros dele que não li; e que poderia, de alguma forma, "conviver com ele", através desses escritos... * Lamento, sinceramente, não ter tido mais encontros com o Daniel Piza. Perdi alguém que, além de uma admiração, foi uma espécie de mentor. Quase um irmão mais velho que o jornalismo cultural me legou. E perdi um intelocutor como poucos. Gostaria de dizer, ainda, que perdi um amigo, se não estivéssemos, muitas vezes, em arenas opostas, e se tivéssemos sabido aproveitar mais a amizade, pura e simples. O Daniel vai ficar como um dos grandes do nosso jornalismo, podendo se ombrear com os maiores de qualquer época, e de qualquer país, na editoria de cultura. Talvez como a bossa nova, na frase de Caetano Veloso, o jornalismo brasileiro não tenha sabido merecê-lo. Sua erudição era autêntica (fui testemunha) e a lista de coisas que lia e/ou acompanhava sempre me exasperava. Minha salvação, aliás, foi ter desistido de ser o Daniel Piza, no tempo do "Fim de Semana", e ter procurado meu próprio caminho, através do Digestivo. Para ir além Entrevistei o Daniel Piza duas vezes: uma em 2006, por ocasião do lançamento do seu livro sobre Machado; e outra, em 2007, por causa dos dez anos da Sinopse. Republiquei o Daniel aqui umas tantas vezes, mas destaco alguns textos de que mais gosto: "Fragmentos de um Paulo Francis amoroso", "André Mehmari, um perfil" e "Saudades da pintura" (sempre achei que ele escrevia melhor sobre artes plásticas do que sobre qualquer outro assunto; e ele observava que eu não era o primeiro a reparar nesse fato). Resenhei, aqui no Digestivo, desde o Questão de Gosto (com alguns de seus melhores momentos no "Fim de Semana") até seu perfil sobre o arquiteto Isay Weinfeld, passando pelo Jornalismo Cultural e até por uma coletânea sua do Orwell. Registro, ainda, nossas polêmicas, em "A arte da crítica" e numa Coluna que escrevi depois de um almoço nosso (e que ele respondeu via e-mail depois). O Daniel se preocupava com sua imagem no Digestivo: às vezes simplesmente corrigia uma informação; às vezes até exigia direito de resposta ;-) Isso tudo para mostrar que ― apesar de um modelo ― ele se considerava um de nós. O que foi uma honra para o site. Para ir mais além Daniel Piza no Digestivo Julio Daio Borges |
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