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Quarta-feira, 25/1/2012 Daniel Piza me fez começar a escrever Rafael Fernandes Daniel Piza me fez começar a escrever Não sei dimensionar a relevância de Daniel Piza para o jornalismo cultural. Não tenho o conhecimento, nem o interesse para tanto. Mas sei de sua importância para mim. Ele foi a minha referência de erudição cultural. Por muito tempo, a primeira coisa que eu fazia no domingo era abrir o Estadão na página da Sinopse. Era obrigatório ― virou um ritual. Quando se é jovem, uma coluna como essa era tudo o que se podia querer: uma quantidade enorme de referências, conhecimento, inteligência e texto impecável. Aliás, a primeira coisa que me impressionou nele ― e ainda impressiona ― foi a fluidez, elegância, leveza e beleza de seu texto. Sem saber, Daniel Piza me fez começar a escrever. Eu quis escrever como ele. Eu quis ter uma coluna como a Sinopse. Alívios em tempos difíceis Em alguns momentos, na faculdade, tudo parecia árido. Eu me sentia fora do lugar; as matérias ora pareciam fora da realidade em geral, ora da minha realidade. Muita coisa parecia careta, desnecessária e atrasada. Outras tantas pareciam constantemente vestidas de terno e gravata emitindo falas de manuais e chavões corporativos. Tudo parecia um cubículo de multinacional. O alívio vinha das artes. De ler, por exemplo, o Digestivo. E, principalmente, o Daniel Piza ― seja aos domingos ou vasculhando seu site. Ele conseguia, como poucos, extrair beleza das coisas mais brutas. Até quando se saia com suas críticas mais pesadas conseguia, pelo seu estilo, aliviar a dureza de certos temas ― e sem perder o conteúdo. E seus textos sobre as artes emanavam uma paixão de causar inveja, já que poucos conseguem se envolver tanto e tão bem com um assunto. Estilo Piza se expressava numa linha tênue entre o excesso de erudição e o informal, entre a seriedade excessiva e a descontração. Poderia parecer pedante demais em alguns momentos, ou exagerar no tom da observação. Mas eu sempre vi esse seu lado como a exceção e não a regra. Embora faltassem pitadas de humor em seus textos ― algo que me incomodou nos últimos anos ― para mim o saldo era positivo: a erudição no ponto certo. Ele tinha, também, um olho raro para as pequenas grandes coisas do dia a dia ― fatos aparentemente banais ganhavam contornos mais fortes graças à sua sensibilidade. Sempre teve preocupação de juntar uma opinião com boas frases, ou seja: apresentava seus argumentos com clareza e força, mas junto com um texto bonito e bem montado. Um não era mais importante que o outro. É um talento raro. De la musique Mas, é claro, ele não conhecia bem todos os assuntos que comentava. Música popular era um tema em que pecava, muitas vezes. E quanto mais pop o estilo, menos ele acertava. Em muitos casos, parecia faltar certa bagagem. Em outros, até conhecimento. Em mais de uma oportunidade, por exemplo, elogiou o White Stripes. Essa "banda" é o oposto do que Piza gostava e defendia. E demonstrava falta de conhecimento básico da "linhagem" do rock desde o blues, ao afirmar que a banda tinha algo de diferente. Em MPB ele acertava mais ― escreveu, por exemplo, um excelente perfil sobre o André Mehmari. Me lembro que numa coluna ele criticou a safra de compositores nacionais naquele momento. Mandei um e-mail discordando, ele me respondeu com outros tantos argumentos. Hoje, entendo mais o que ele quis dizer: não condenava tanto o panorama musical em si, mas a falta que andava (e anda) fazendo uma melodia marcante, com acordes bem trabalhados. Sem serem banais, nem excessivamente rebuscados. Enfim, uma carência de canções bem acabadas e memoráveis. Faz certo sentido, até hoje. E, mesmo nos pontos falhos na música, continuava acima da média. Inteligente e observador que era, sabia pegar atalhos: se lhe faltava a tal bagagem sobre o assunto, conseguia extrair um comentário interessante de uma canção ou um disco. Algo a despertar nosso pensamento da inércia. Ludopédio e A prova do 9 Daniel Piza gostava de futebol e escrevia bem sobre o assunto. Tinha o defeito de muitos intelectuais de exagerar na tinta na importância ou até na "arte" do futebol. Mas passava longe dos chavões, gostava de observar tática, subtextos do jogo e tinha belos comentários sobre a técnica dos jogadores ― talvez, neste último quesito, só o Tostão faça o mesmo tão bem. Piza foi um dos poucos jornalistas ― ou o único ― que defendia que Ronaldo Fenômeno poderia voltar a jogar bem depois de sua contusão de 2000. Comprou a briga e chegou até a provocar. Numa coluna de fevereiro de 2002, cravou: "Agora, os urubus que perdoem, mas a volta dele é fundamental ― e todos continuaremos torcendo por ela". Essas defesas fizeram com que Piza se tornasse um dos poucos jornalistas em quem o jogador confiava, dando exclusivas ― como a confirmação de sua aposentadoria na noite anterior. De qualquer forma, voltando a 2001, eu também acreditava que Ronaldo voltaria bem e mandei um e-mail agradecendo por uma coluna anterior em que ele defendia a tese. O Fenômeno já tinha voltado a jogar pela Inter de Milão e estava cada dia melhor física e tecnicamente. Piza me citou na coluna seguinte (eu ainda assinava como Rafael Azevedo, antes de entrar para o Digestivo). E eu, claro, fiquei extasiado. Naquele domingo eu estava num hotel e não me fiz de rogado: surrupiei a página do Estadão da recepção. Foi tão marcante que guardo até hoje o recorte da página ― e ela ilustra esta coluna. Nos últimos dois anos, através de sua paixão pelo futebol, pelo jornalismo e pelo Corinthians se tornou coordenador editorial da revista do time, a Corinthians Mag, até sua edição mais recente. Coincidentemente, um especial sobre Ronaldo, com as matérias principais escritas por Piza. Uma lágrima É curioso como acabamos tendo uma forte conexão com pessoas que sequer conhecemos. Admiramos suas obras e algumas de suas atitudes de tal maneira e durante tanto tempo que parece que somos próximos. A tal ponto que, quando se vão, causam impacto. De certa forma, algo parecido aconteceu com o guitarrista Wander Taffo, morto em 2008. Sempre achei uma figura importante para a guitarra nacional, acompanhei sua carreira e estudei na sua escola. Foi um baque. Com Daniel Piza, a mesma coisa. Seus textos, observações e ideias me influenciaram tanto na área cultural que também foi um choque quando, num começo de tarde de um sábado meu pai ― também seu leitor ― me deu a noticia. Hoje em dia, morrer com 41 anos é partir muito cedo. Para alguém que trabalhava no campo intelectual, então, é quase uma injustiça. Certamente ele ainda tinha muito a evoluir e produzir. Mas ninguém disse que a vida é justa. Na pior das hipóteses temos ainda seus livros, o acervo do seu site e os textos do blog. E fica, principalmente, o exemplo de sua sede pelo conhecimento e paixão por seu ofício. Rafael Fernandes |
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