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Quinta-feira, 2/2/2012 O balé dos coletivos Elisa Andrade Buzzo foto: Sissy Eiko São Paulo é muito mais profunda e extensa do que se pode imaginar - para além dos pontos cardeais há terras sem fim, paisagens perenes, uma cidade que se dispõe em vagões com suor, volumes e esbarrões. Vamos desta vez embarcar na Barra Funda, sentido Itaquera, na famigerada linha vermelha do metrô. Depois que vem à tona do subterrâneo centro velho, o mundo se espalha nas janelas em um mar residencial, um ou outro prédio que se eleva como desajustado espigão, mancha colorida que se desdobra no horizonte. São Paulo é, ainda, ao se estender o trajeto para o trem em seus municípios vizinhos, a cidade das casas, em algum lugar no mapa, Vila Matilde, Arthur Alvim, Manuel Feio vemos a dobradura da periferia se levantar imperiosa de seu espaço vasto. E o coletivo de Zorra Total, cuja locomotiva, caricata, se assim podemos dizer, é bastante esvaziada de vida, a realidade é, portanto, mais distinta e franzina. Seja lá qual for a situação, no trem vazio ou lotado, um dá licença sempre cai bem, um cidadão cansado tombará ao seu lado um sono incontrolável, uma mão disfarçadamente procurará a sua ou se estenderá em oferta, nua. Há um ou outro passageiro meio Valéria que grita "Estação Favela". É como se a gente, entrando aos gritos e solavancos, daí tirasse seu ganha-pão final. Ah, se todos os dias o trem girasse no infinito das cores em movimento, Guaianazes e sua vista de infinitos tijolinhos, o CEU imenso preenchendo o vermelho de furta-cor, e os trilhos, num balanço cinza monocromático. De quem serão estas existências que se escondem, labirínticas, por dentro destas outras janelas dentro das minhas janelas? No traçado monótono das periferias se superpõe shoppings centers gigantes, colados ao metrô, com seus vendedores sonâmbulos de juventude desperdiçada, o que resta de entretenimento para a população. A princípio, vejo em seus olhos que para eles sou uma paisagem qualquer de trem - já vai passar a carruagem em desalento -, sua vida é a própria embarcação num contínuo e repetitivo movimento exaustivo, de quem vê mil rostos e não enxerga nem se atém a ninguém. E para mim assim são os locais de passagem: um desejo que forte se anuncia, um arranque descompassado e duro, ou uma frenagem traumática - sempre é necessário parar e, daí, recomeçar? Na estação domingueira, guardas bocejam e até o maquinista olha para mulher bonita. Estações às vezes pouco resguardadas de operações exclusas, belas e desgastadas, frenéticas e solitárias, protegidas e vulneráveis, abertas ao mundo e gradeadas - elas podem ser sobremaneira pacatas, a via férrea vazia, cachorros latindo, passarinhos, Júpiter e a Lua rebrilhando como únicas espectadoras desse romance à espera de seus personagens. Ou então, elas palpitam de gente cansada ou festiva, passando a existir a realidade pelo movimento e pela passagem, o caminho de fios, metal e aço foi por completo perpassado, resta aguardar um novo balanço, um apito desgovernado. Para, então, depois desaparecer. As estações de trem têm algo de tristeza e despedida - uma revoada negra de pássaros, um frio entardecer. Não há como não me lembrar de Pureza ("Lá pela madrugada ouvi um apito de trem muito de longe. E, nada é mais triste nessas ocasiões do que um trem que se comunica, envia sua mensagem por dentro da noite"), cidade inventada no romance de José Lins do Rêgo, em que um homem sem rumo no mundo enfim se prende desastradamente a duas mulheres, para depois restituir sua libertação. É a estação da estrada de ferro sinal de mesmice, revelia, transformação. Também há algo de encontro, de puro e doce nesta atmosfera férrea, pois alguém sempre está a chegar na estação. Alguém sempre aguarda na plataforma, seja lá o que for, se planta nos bloqueios ou se lança às escadas. Tal espera amorosa é esperançosa e, plena de faísca da vida, rende força à locomotiva. E desse encontro que se desencontra, se bate e se resigna, se faça a moção de gente, o contato metálico entre vagão, lama, serpente. Elisa Andrade Buzzo |
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