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Quinta-feira, 9/2/2012
Memória insuficiente
Vicente Escudero

Estava checando e-mails quando recebi a notícia da morte do Piza através do grupo de discussão do Digestivo. Eram mais ou menos onze da manhã, eu havia acabado de acordar, não me recordo se era um final de semana ou feriado, e o Estadão do dia estava jogado na mesa atrás da minha poltrona. Minha primeira reação não foi visitar os links nem terminar de ler o e-mail, mas pegar o jornal e procurar alguma notícia, algo que eu não fazia há mais de um ano, depois que acostumei a usar a internet como repositório diário da minha necessidade de informação, cultura e algum humor. Fui tomar café pensando que aquilo fosse alguma piada zombando da seriedade do Daniel, algo no estilo do perfil falso dele no Twitter, e logo perdi o interesse. Só depois de algumas horas fui descobrir que era verdade. O Piza havia sofrido um AVC e falecido alguns dias antes da passagem do ano. Triste.

Eu não era mais seu leitor constante desde meados de 2010. Comecei a acompanhá-lo um pouco antes do crescimento da coluna Sinopse no Estadão e acabei me interessando pelo seu estilo direto e limpo. Não concordava com metade do que ele dizia, acreditava que ele tratava de assuntos demais numa coluna muito pequena (talvez um defeito do jornal e não dele), mas sempre tive a opinião de que ele era o colunista de cultura mais moderno de todos os nossos jornais. Não tinha um texto melhor que Sérgio Augusto, nem a disposição para a polêmica do Paulo Francis e passava longe do humor do Ivan Lessa. Mas, à altura da tríade, também tinha a sua característica marcante: extremamente culto, era capaz de escrever bem sobre qualquer assunto.

O maior acerto do Piza foi ter criado um blog dentro do Estadão para escapar das limitações editoriais do colunismo. Acompanhei sua carreira de blogueiro desde o início e diversas vezes participei das discussões em seus posts. Ele era patrulhado de maneira incansável. Sempre se preocupava em responder aos melhores comentários e não pensava duas vezes antes de se defender dos trolls, essa espécie disseminada nas caixas de comentários da internet. Por algum tempo, acompanhei seu blog diariamente, até perceber que ele havia chegado um pouco atrasado ao jogo. Eu já havia conhecido os atalhos do conteúdo on-line, a maioria produzido em inglês, e quase não visitava mais as páginas dos jornais daqui. Esse distanciamento, de certa forma, foi semelhante ao processo da época em que deixei de assistir televisão. Diante de tanto conteúdo interessante espalhado pela internet, os jornais daqui insistiam em tentar manter a mesma estrutura de produção de conteúdo das edições impressas, que deixam o leitor em segundo plano e até subestimam sua capacidade intelectual. Essa atitude, acredito, acabou servindo apenas para fundamentar a polarização com líderes ideológicos de grupos radicais, que se aproveitaram da exposição repentina dos jornalões na internet para esculhambá-los e arregimentar grandes tropas de linchadores on-line. Sim, a internet no Brasil se assemelha ao que aconteceu recentemente na praça Tahrir, em Cairo, no Egito, mas sem a vitória do grupo mais evoluído.

Seria injusto se eu não dissesse que apesar de não concordar com muito do que o Piza escrevia, sempre o estimei naquilo que nossos gostos combinavam. Ele tinha a opinião fácil de defensor da literatura clássica, uma postura semelhante à de Harold Bloom e seu cânone, mas com autores brasileiros que prezava no topo, como Guimarães Rosa, Graciliano Ramos e seu biografado, Machado de Assis. Lembro-me de um post em que ele apresentou seus livros preferidos e, depois de muita discussão nos comentários, alguém criticou Victor Hugo. Comentei que gostava bastante de Trabalhadores do Mar, traduzido por Machado de Assis, e disse no final que aqueles que não o leram, não sabiam o que estavam perdendo. Para a minha surpresa, no domingo seguinte, na parte da Sinopse tratando sobre literatura, lá estava meu comentário transformado na própria opinião do Piza: "Baita alegria!"

Dos livros que publicou, li a pequena biografia sobre Ayrton Senna (O Eleito), o último livro de contos (Noites Urbanas) e parte da biografia sobre Machado de Assis (Um Gênio Brasileiro). O melhor, sem dúvida, é a pequena biografia de Senna, narrada no mesmo estilo conciso e denso da Sinopse. A biografia de Machado foi ficando de lado até ser abandonada na estante. Não gostei dos contos de Noites Urbanas. A maioria deles é artificial, emana um sentimento cosmopolita ingênuo e tem o defeito que o próprio autor identificou, quando foi questionado certa vez sobre a possibilidade de críticos se tornarem bons escritores: o conhecimento excessivo das regras mais atrapalha do que ajuda. Entre os 17 livros que publicou, acredito que o melhor do Piza ficou na Sinopse e no blog, uma grande ironia machadiana para um escritor que relutou em fazer parte da internet.

No período em que parei de acompanhar de perto seus escritos, quando lia a Sinopse e acessava seu blog, os textos que acabavam me interessando eram sobre comportamento e o dia a dia de São Paulo. Daniel capturava facilmente as transformações do contemporâneo; nunca entendi por que não investiu no formato das crônicas, em vez de partir para os contos de Noites Urbanas.

E não foi só essa dúvida que ficou. Diante de uma morte tão prematura e abrupta, acabei ficando sem a resposta de como seria o seu trabalho no futuro exclusivamente digital. O que pensaria o homem que escrevia sobre qualquer assunto, sobre o futuro que poderá permitir o acesso de qualquer pessoa a todo tipo de conhecimento? Mudaria de opinião? No Egito Antigo, era costume deixar um morto no local onde se realizavam os banquetes para lembrar os participantes sobre a brevidade da vida e da necessidade de aproveitá-la em sua plenitude. Agora que possuímos o banquete do conteúdo, lembremos do Piza escritor, um grande homem que se dedicou ao conhecimento e a compartilhá-lo. Adaptando da Odisseia, de Homero: "O leitor sempre vai se lembrar, durante toda a vida, da pessoa hospitaleira que dá mostras de amizade". E não existe hospitalidade maior do que dividir o conhecimento. No caso do Piza, uma amizade entre escritor e leitor desconhecidos.

Vicente Escudero
Campinas, 9/2/2012

 

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