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Quinta-feira, 8/3/2012
Memórias de ex-professoras
Carla Ceres

Eu também já fui professora, ocupação tradicional em minha família, há quatro gerações. Troquei as aulas de português e inglês pelo comércio de componentes eletrônicos. Minha mãe deixou de lecionar para trabalhar em banco. Minha avó, depois de viúva, trabalhou como funcionária pública no período da manhã, lecionou em um curso noturno e abriu uma escola de datilografia em casa, no período da tarde. Tudo isso, ao mesmo tempo, até aposentar-se.

Ao que parece, nós mulheres temos uma facilidade natural para ensinar, mas nosso verdadeiro talento é sobreviver da melhor maneira possível. Minha tia-bisavó foi convidada para ser diretora da escola suíça onde se formou. Bem que ela quis aceitar, mas seu pai proibiu. O convite lhe pareceu uma ofensa mortal. Onde já se viu uma jovem educada trabalhar de verdade? O melhor era voltar pro Brasil e ser professora, o que não era trabalho, só distração.

Lecionar por desfastio, ocupação de moças finas e cultas, que não precisavam de dinheiro, pois eram bem-nascidas e, em breve, seriam bem casadas. Essas mulheres tinham tempo de sobra para ler, estudar, preparar aulas interessantes e cuidar dos filhos com a ajuda indispensável de empregadas domésticas, profissionais raras e caras hoje em dia. Na época em que mulheres estudiosas só podiam escolher entre ser donas de casa ou lecionar, as professoras eram valorizadas e vistas com respeito. A famosa palmatória, embora doesse bastante, funcionava mais porque o aluno se envergonhava de merecer um castigo físico. A expulsão de um colégio não significava mudar-se para outro, levando uma gloriosa fama de encrenqueiro.

Entrei para a escola aos quatro anos de idade, quando as palmatórias já estavam no esquecimento. Minha mãe me entregou à professora e avisou: "Ela já sabe ler e escrever. Não costuma dar trabalho, mas, se for desobediente, pode bater nela." A professora, que, segundo o costume da época, chamava-se "tia" Zezé, ficou sem jeito, disse que as "tias" eram amigas das crianças, podiam, no máximo, deixar de castigo. Minha mãe insistiu: "Mesmo assim, pode bater." Ela estava falando sério e eu sabia.

O número de moças bem formadas foi insuficiente para abastecer as novas escolas surgidas com a falsa democratização do ensino. Em geral, as melhores professoras iam para estabelecimentos que ofereciam vantagens em termos de salário, localização e clientela. Até aí, nada de novo. A boa educação continuava privilégio de poucos enquanto o restante da população recebia um ensino menos exigente.

As novas professoras, para indignação dos governantes, não trabalhavam por esporte. Lecionavam nos três períodos, não tinham tempo de ilustrar-se, atualizar-se ou preparar aulas. Viviam estressadas, faziam greve. Não queriam mais ser tias postiças, mas profissionais de respeito. Como resposta a essas senhoras, celebrizou-se uma frase atribuída a Paulo Maluf, então governador de São Paulo: "Professora não é mal paga, é mal casada."

Maluf negou a autoria da pérola, mas a frase era sintomática do crescente desrespeito aos professores em geral, tanto às mulheres mercenárias, quanto aos homens que faziam aquele trabalho de mulher.

Quando voltei da Inglaterra, para concluir o curso de Letras, estagiei e peguei aulas como substituta em uma escola estadual. Os alunos primeiro tentaram me amedrontar, fazendo pose de traficantes perigosos (o que, provavelmente, alguns eram), depois uma dupla começou a conversar em um inglês sofrível de quem lavou pratos no exterior. Assustaram-se ao perceber que eu os compreendia: "Você fala inglês, dona? Que que tá fazendo aqui, em vez de ir dar aula numa escola decente?"

Era uma boa pergunta, mais ou menos a mesma que muitas professoras vinham se fazendo: "Por que mulheres inteligentes optariam pelo ensino se podiam escolher outra profissão?"

De acordo com Steven D. Levitt e Stephen J. Dubner, no livro Superfreakonomics, a qualidade do ensino nos Estados Unidos vem baixando porque as mulheres mais inteligentes agora podem optar por profissões de prestígio e alta remuneração em áreas como medicina, direito, economia. Segundo eles, "o exército de professoras do ensino fundamental começou a sofrer drenagem de cérebros."

Atualmente, o estado de São Paulo sofre com a falta de professores de primeiro e segundo graus. Alunos dos primeiros anos de graduação em Letras, por exemplo, já estão trabalhando como professores não apenas de português ou língua estrangeira, mas também de matemática, biologia... Quem quiser voltar a ser professor tem trabalho garantido.

Nota do Editor
Carla Ceres mantém o blog Algo além dos Livros. http://carlaceres.blogspot.com/

Carla Ceres
Piracicaba, 8/3/2012

 

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