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Sexta-feira, 20/4/2012
O fim do livro, não do mundo
Marta Barcellos

As notícias nos dão conta: já vivemos a nostalgia do livro. Observe que, quando escrevo aqui a palavra livro, antecedida da palavra nostalgia, uma imagem robusta apossa-se da mente dos leitores digitais que me acompanham: um tomo considerável, talvez clássico da literatura de ficção, um romance daqueles que espelhava, provocava e civilizava o mundo nos bons tempos, graças ao dom de um autor genial e infelizmente sem antecessores na contemporaneidade.

Pois é, o mundo não é mais assim. O tal autor partiu-se em muitos, vozes se espalham por toda parte, em todo tipo de mídia e de linguagem, e o livro de papel - com a experiência de profundidade e fabulação que ele representa - de fato está em perigo. Como leitora que teve a emoção e o conhecimento forjados por volumes assim, também me lamento. E fico feliz por minha filha de 12 anos ainda ter conhecido esta era, mesmo que atracada aos Jogos Vorazes de sua geração. Não, ela não está lendo Dostoievski aos 12 anos, como muitos literatos experimentaram, mas pelos seus relatos entusiasmados tento imaginar que o best seller do momento é uma espécie de 1984, com uma crítica extra aos reality shows. A seu jeito, quem sabe, um dos últimos clássicos do papel.

Terei a oportunidade de acompanhar de perto como será a evolução (?) de sua leitura nos próximos anos, a transformação de uma geração em transição: observar quando passará aos leitores digitais, se fará isso em relação a todas as suas leituras, de que forma se dividirá entre os dois suportes, se a lembrança da pré-adolescência acompanhada por coleções como Harry Potter e Jogos Vorazes também fará dela uma nostálgica, quem sabe garantindo uma sobrevida ao papel além da nossa geração.

Mas a ideia aqui não é engrossar o coro de futurólogos com seus palpites certeiros sobre a dimensão e as características da migração da nossa leitura para formatos digitais. Particularmente, tenho pensado que o sentido de permanência, próprio das letras impressas em papel, lhe garantirão ao menos um nicho de mercado, nem que seja a la vinil. Não faço apostas, no entanto. Vai que a valorização do permanente está mais para característica individual do que humana ou geracional...

Meu intento é mostrar que o fim do livro, como o conhecemos naquela imagem lá em cima deste texto digital (texto que pode ser alterado por mim a qualquer momento), não será o fim do mundo nem da humanidade. Será (ou melhor, já está sendo) sucedido por outras formas de transmissão de conhecimento e de valores. Como acontece quando uma geração julga a anterior, não temos o distanciamento necessário para avaliar o que se perde e o que se ganha - e talvez o exercício de contabilizar perdas, como se tem feito insistentemente, tenha pouca serventia neste momento.

Estas reflexões me vieram ao ler um ensaio do professor João Cezar de Castro, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), questionando a propalada crise da crítica literária, e, por tabela, da própria literatura. Em um passeio pela história, Castro mostra os temores, entre intelectuais e filósofos de certa época, gerados pela difusão de uma nova tecnologia: a do livro.

Não por acaso, ele encontra um primeiro vestígio do problema em um romance de Victor Hugo ambientado em 1482, Notre-Dame de Paris. O personagem Dom Claude compara a novidade do livro impresso com a Catedral: "Infelizmente! - disse -, isto matará aquilo". Ou seja, o livro destruiria o edifício; a imprensa superaria a arquitetura. Antes havia a cátedra e o manuscrito, agora a palavra falada e a palavra escrita se alarmavam com a palavra impressa.

Mas foi quando o livro se tornou objeto cotidiano que a tradição na transmissão de conhecimento e de valores se viu de fato ameaçada: "Receio que a abundância e o baixo preço [do livro] terminem por fazer com que fiquemos mais negligentes", proferiu em 1708 o filósofo italiano Giambattista Vico, em discurso inaugural da Universidade de Nápoles. A preocupação era de que difusão de textos impressos tornasse negligente o corpo discente das universidades.

"Os alunos preguiçosos prevalecerão, pois, tanto tendem a descuidar da aprendizagem oral, quanto da formação letrada. De um lado, faltam às aulas, já que o conteúdo das mesmas se encontra nos livros. De outro, negligenciam a leitura, porque podem aprender de oitiva". Se trocarmos a palavra "livros" por "internet", observa Castro, teremos uma reclamação bem atual dos professores, e no entanto a afirmação acima foi feita pelo filósofo alemão Johann Gottlieb Fichte em 1807.

Antes de concluirmos nossa viagem ao passado, é importante ressaltar aonde não se quer chegar: não se trata de igualar as novas tecnologias para mostrar que todas encontraram resistências por parte dos conservadores. Para além desta banalidade está o fato de que grandes inovações - como o livro e o fim de seu formato original - não devem ser reduzidas a uma análise de retrocessos e avanços imediatos.

Por exemplo: no caso da universidade ameaçada pelo livro ("A verdadeira universidade de nossos dias é uma biblioteca", afirmou em 1840 o historiador escocês Thomas Carlyle), foi necessário desenvolver um novo sistema universitário, e chegou-se desta forma à associação entre ensino e pesquisa, na qual se produz um conhecimento novo. "Ou seja, que ainda não se encontra em livro algum!", diz Castro. Foi assim que se construiu o modelo da universidade moderna.

Obviamente, hoje, transformações já estão em curso. A perda da centralidade da literatura no mundo atual (no Brasil semialfabetizado, chegou a ter papel central?) ocorre no momento em que surge a internet. O mundo não cairá na barbárie, caso a literatura como a entendemos atualmente perca de vez a importância na formação humana. E o que será da literatura, seus autores e leitores apaixonados? "O caráter marginal da literatura assegura a criadores, críticos e teóricos uma liberdade inédita, cujo aproveitamento exige a recusa de posições nostálgicas ou ressentidas", diz Castro. Festejemos a marginalidade.


Marta Barcellos
Rio de Janeiro, 20/4/2012

 

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