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Sexta-feira, 11/5/2012 A guerra das legendas e o risco da intolerância Marta Barcellos Na cauda longa da internet, sempre é possível evitar conflitos - de gosto e de interesses. Cada qual encontra seus pares, organiza sua tribo e se lambuza na cultura ou no entretenimento que lhe aprouver. No Facebook, por exemplo, dá para cancelar a assinatura de quem comenta BBB e fingir que o programa não existe. Uma busca rápida no Youtube e descobrimos que existem pessoas nos quatro cantos do mundo virtual com a nossa exata preferência musical ou cinematográfica. Nas mídias antigas, porém, ainda rolam alguns conflitos antigos, antigos. Do tipo... luta de classes! Pois é, a velha luta de classes marxista, em plena era pós-moderna (ou já alter-moderna, como prefere o francês Nicolas Bourriaud, que andou pelo Brasil falando de arte contemporânea), resiste aos tempos de identidades múltiplas e globalizadas. Foi o que deduzi da guerra das legendas, que vem sendo travada em nossa televisão por assinatura. Ao contrário da TV aberta, reconhecida desde sempre como mídia massificada e popular, o serviço pago tem aparência abrangente, por conta das dezenas de canais oferecidos a quem tem paciência com o controle remoto e com os comerciais aos berros da Net. Só que ela não possui uma cauda tão comprida assim, ainda mais se compararmos com a internet... Vamos à guerra. Na disputa pela audiência da nova classe média brasileira, também chamada de classe C emergente, muitas emissoras por assinatura passaram a dublar séries televisivas e filmes que antes eram legendados. Para a "velha classe média", foi a gota d'água. Sim, porque a classe média outrora comovida com o sofrimento dos excluídos anda incomodada com essa inclusão toda. Aeroportos e shoppings lotados graças às compras parceladas, autoajuda em todas as prateleiras da livrarias, gêneros musicais de gosto duvidoso por toda parte e agora... filmes clássicos dublados no meu canal! Onde isso vai parar? Pois a discussão foi parar nas páginas de cultura dos jornais do Rio de Janeiro (ops, do único jornal do Rio), repercutiu internet afora, e os ânimos mostraram-se para lá de exaltados. Nos termos do parágrafo aí de cima. Embora se trate de uma guerra de curto prazo (acabará na medida em que os canais e o sistema de TV oferecer opções com ou sem legenda no controle remoto), considerei-a emblemática desses tempos confusos que estamos vivendo. Aliás, já é emblemático que seja justamente uma solução tecnológica que vá resolver o problema. Se a internet não engoliu a TV como se esperava, a TV tenta cada vez mais ser interativa, para competir com a internet. Solução dada, a trégua se estabelecerá: aqueles que gostam de som original com legendas não vão precisar olhar para o lado e pensar em quem são os tais que preferem filmes dublados. Mas aí surge a questão que me interessa: quem gosta de filme dublado é o semialfabetizado que ousou invadir os shoppings da velha classe média só porque se beneficia do bolsa-família? Será que esses rótulos ainda funcionam? Sei não. Voltando ao ambiente da internet, quantas vezes nos surpreendemos com pessoas que poderíamos colocar numa única moldura social e cultural, a partir de dados como local onde mora ou escolaridade, e que simplesmente não correspondem aos antigos estereótipos? Em pleno sertão nordestino mora o expert em música erudita; na zona sul carioca pode estar o mais novo fã do sertanejo universitário. E durma-se com essa diversidade toda, depois de desligar o computador. O fato é que há sinais da multiplicidade de identidades sociais e culturais em toda parte, e também de confusões e tensões geradas por ela. Fico até com pena dos pesquisadores do mercado de consumo e dos robozinhos da internet que tentam encaixar os consumidores em caixinhas. Mas difícil mesmo será mudar a cabeça de gerações que se acostumaram a organizar o pensamento usando as tais caixinhas. Sim, estou falando de preconceito e intolerância, que nem sempre serão mediados por soluções tecnológicas no mundo, digamos, presencial. Veja este outro exemplo que envolve tensão e caixinhas: a guerra entre motoristas e ciclistas nas grandes cidades. O mesmo colunista do único jornal carioca (ok, do principal jornal carioca) que levantou a questão da dublagem de filmes também se envolveu nesta frente, incomodado com o congestionamento provocado por uma nova ciclovia em seu percurso diário de táxi. Cravou que, ao contrário de Berlim, com clima ameno compatível, o Rio jamais teria entre seus ciclistas trabalhadores a caminho do escritório. Bicicletas seriam para lazer ou estudantes. Pela reação na internet, não era bem assim. Quem se arrisca hoje, no Rio ou em São Paulo, a traçar um perfil dos ciclistas que desafiam os carros no trânsito? São os engravatados de Berlim ou os entregadores de encomendas? Estudantes que fogem do congestionamento ou do transporte caro? Trabalhadores ecológicos ou simplesmente pragmáticos? Só há um motivo para colocá-los numa única caixinha: a intolerância. A intolerância ao outro, ao diferente de nós, àquele que nem tentamos compreender, às mudanças que parecem ameaçar "direitos conquistados" mas que podem tornar a vida mais diversa e interessante. Outro exemplo? As reações à aprovação do sistema de cotas raciais na universidade pública. Mas isso daria outra coluna... Marta Barcellos |
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