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Sexta-feira, 18/5/2012 O ladrão incendiário Ana Elisa Ribeiro Consumismo é uma palavra dessas que parecem ofensa. Sim, de fato, é ofensa. Consumista é quem não consegue se conter diante de uma comprinha, mesmo quando não precisa do que vai adquirir. Aliás, principalmente porque não precisa. Na verdade, dá uma gana danada de comprar um objeto que, de repente, passa a ser extremamente necessário. Consumista é aquele moço das camisas polo ou aquela moça dos sapatos multicoloridos. Sabemos que o adjetivo é mais aplicado às mulheres, que carregam, motivadamente, a fama de mais consumistas do que os machos (que preferem consumir outro tipo de coisa). Machismo? Falta do que fazer. Classificar é uma delícia, não é mesmo? Vamos assumir. Eu sou consumista. Não de bolsas, sapatos de salto e pós compactos, mas de livros e blusinhas. Não resisto mesmo. Logo que vejo o objeto do meu desejo minha cabeça começa a fabricar argumentos pró. Não é pra isso que eu trabalho? E vamos nos lembrando das lições de filmes e músicas: viver o presente, ter prazer imediato, carpe diem, sabe lá o que será o amanhã, "como vai ser o meu destino". E isso basta para pedir à moça pra passar o cartão. Blusinhas iguais, várias. O armário é uma espécie de eco ou de gagueira visual. Gostei da blusinha, compro logo duas ou três. Tem azul? Vermelha? Rosa? Só não dá se for amarela ou marrom. Preto é clássico. O time sempre ganha de preto. Ah, de oncinha também não vai. Aliás, roupas zoológicas não me caem bem. Zebras, cobras, onças e tigresas que me perdoem, mas a cor chapada é fundamental. Tem manguinha de princesa? Adoro. Não se parece muito comigo, mas dá um arzinho de menina que pode ser vantajoso a estas alturas. Barriga de fora nem pensar. Essa não me desce desde a época em que eu podia. Alcinha não me convence. Braço de matrona... sabem como é, mas não ponham reparo não que eu fico tímida. Mas os livros... ah, os livros. Não resisto. E os argumentos são ainda mais fortes: não é pra isso que eu trabalho? Aliás: meu trabalho tem tudo a ver com isso, minha gente. Como pode uma professora não ter livros? Médico sem estetoscópio; dentista sem sonda; mecânico sem chave de fenda; costureira sem agulha e linha; "avião sem asa, fogueira sem brasa... futebol sem bola, Piu-piu sem Frajola" e por aí vai, com a bênção de Claudinho & Buchecha. Passo pela livraria pensando em tomar um café. Lá dentro, ando por entre as estantes, como se estivesse num labirinto do qual não fizesse a menor questão de sair. Tire sua soneca em paz, Dédalo. Não vou importunar você. Nada de mapas. Não quero sair. Passeio, passeio e vou juntando livros nas mãos. Diabo de coisa pesada esse tal de papel. Empilhado ele fica mais difícil de carregar. As lombadas vão se juntando, como numa favelinha de janelas coloridas, e eu vou fazendo minha feira. Primeiro eu colho, depois vou ver os preços para me assustar um pouco. Mas nem isso consegue me desanimar. Lá vem a máquina de ler códigos de barras. Coitada, só lê isso num livro. Aliás, mais do que muita gente. Mas não lastimo não. As pessoas foram apresentadas ao livro. Só não entram nele porque acham que têm coisa melhor para fazer. Não sabem o que dizem. Mas isso não é coisa que se peça a alguém ou que se obrigue a fazer. É como pedir amor. Não dá. Então deixe estar. Enquanto isso, vou alinhando, em cima das estantes, os livros que desisti de carregar. Um, dois, três, dez, quinze. Meu dinheiro não chega aí. A conta sai cara. Mas e a necessidade? E a ansiedade? Já lá na Idade Média diziam que tinham medo da "explosão de informação". Agora que isso é mato, eu é que me lasque. Valham-me abajures acesos. I love you, companhia elétrica. Eu sou consumista com livros. Nem preciso, mas é que é tão exclusivo, tão único, tão próprio. Um livro bom não é como as blusinhas de manga de princesa. Não dá para pedir um azul, um lilás e um branco. Não tem P, M e G. Um bom livro é só ele. Vou lá pagar. Não tem jeito. Se eu não levar todos estes, tenho certeza de que terei pesadelos à noite. Acordarei assustada e suada no meio da escuridão e o arrependimento me fará refém. Assim pensa um consumista que não quer sofrer. Vamos lá. Vou trabalhar mais no mês que vem e quem sabe as prestações me pareçam suaves? Não raro, chego em casa e verifico que comprei livro que já tinha. Dá um arrependimentozinho tipo surto. Nada que um copo d'água não resolva. Os pensamentos tratam logo de arranjar explicação: ah, mas a outra edição era pior, tinha letras miúdas e uma traça já lhe comeu uma quina. Ou outra: gente, comprei outro deste? Deve ser porque é muito bom. Pelo menos sou coerente. Ou: vejam como sei do que gosto? Ter dois é interessante porque deixo um para empréstimo (coisa que odeio) e outro para o aconchego das estantes do escritório. Mas sou coerente. O maior cômodo da casa é o escritório. Dizia o arquiteto que era pra tirar aqui e ali, aumentar banheiro ou cozinha. Não, sem chance, meu caro. Aqui neste cômodo você não mexe. Tomo banho de pé e lavo louça entre a geladeira e o fogão, mas livro precisa respirar. Mais do que eu. Meta aí logo mais uns metros quadrados porque tudo aqui está sempre em expansão. Daí os problemas de espaço, de armazenamento, de peso, de crescimento desordenado, que nem acontece nas grandes cidades. Livros em fila dupla. Livros mal estacionados. Aqui a ordem é esta. O barato é que é seguro: milhares de reais investidos nas paredes destas estantes brancas e nenhum ladrão há de querer levar isso um dia. Leva TV, leva som, leva computador, leva até meu tablet cheio de obras virtuais, mas meus livros provavelmente ficarão ali. É torcer para que não me venha um ladrão incendiário. Ana Elisa Ribeiro |
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