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Sexta-feira, 25/5/2012 Esquecendo de mim Marta Barcellos A memória é o que há. Quem já conheceu uma pessoa que teve perda de massa encefálica, com danos na memória, sabe do que estou falando. Ou mesmo quem convive com um idoso com demência. Pois é. Sentimentos à parte, é impossível ignorar a sensação de que o que sobra, sem a memória, é uma semipessoa - uma prova viva da inconsistência da alma, do espírito ou do que quer que seja a nossa construção da essência do verdadeiramente humano. Há, claro, a possibilidade de essa essência humana sem memória ser reconstruída, mesmo que precariamente, e desta forma voltar a fazer sentido, quando tudo o que se quer é crer. Nada mais poderoso e incontestável do que a crença. Então, para esta mãe que cuida do filho sobrevivente do desastre de carro, ou para esse filho que se dedica a captar os lapsos de lucidez da mãe com Alzheimer, existe o humano sem memória. E apenas para eles. Isso tudo me vem à mente - sempre ela - quando me pergunto por que andamos tão preocupados com a memória. Talvez, nestes tempos sem deuses nem ideologias, ela seja mesmo o que nos resta. Queremos escrever a nossa biografia na linha do Tempo e deixar o álbum de fotografias da nossa vida na posteridade da internet. Sentimos a urgência de lembrar e ser lembrados. E que desespero quando perdemos a memória - do computador. A ironia é que, como a memória também é feita de esquecimento e fabulações, temos tanto controle sobre ela quanto sobre a nuvem que abriga o nosso back-up. A memória física parece ser o que nos restou, o que ainda nos faz humanos - "ainda" porque já se fala por aí no pós-humano. Esquecer é como morrer sem deixar vestígios. Por isso haja fosfosol, café com coca zero, alertas no smartphone, listinhas de papel na bolsa - e que desespero não saber onde estão as chaves de casa... Cultuamos a memória como nunca, a nossa e a dos outros. Biografias e casos reais nos ensinam a viver quando não há mais de onde tirar motivos ou esperanças: alma, deus, natureza, o novo iPhone... tudo parece tão provisório! Precisamos desse grande arquivo da vida para nos basear, um arquivo no qual se possa acessar informações e histórias de outras vidas aos borbotões. Uma dose diária de Google e outra de Facebook para nos alimentar e também nos inserir no mundo, deixando o nosso rastro de imagem cool e conectada. Só que existe um problema: um belo dia, acordamos querendo esquecer. Há algo de insuportável em colecionar memórias. Principalmente nossas próprias memórias. Por mais que tenhamos inventado cuidadosamente a nossa autobiografia e recebido treinamentos intensivos nos últimos anos para deixar a modéstia e a discrição de lado, ser nós mesmos, com tanta intensidade, cansa. Mesmo quem lapidou um bom personagem para esta encenação narcísica atual um dia para de se divertir. Talvez porque até os borrões da autoficção são criados por nós mesmos - este "eu" que nos persegue - a partir de experiências e expectativas que tentamos corresponder. É nessa hora de cansaço que dá vontade de usar aquele aparelho do filme Brilho eterno de uma mente sem lembranças, que simplesmente apaga recordações. Ou de sair para comprar cigarros na esquina e nunca mais voltar. Ou de tornar-se o personagem anônimo na multidão dos livros de João Gilberto Noll. Muita calma. Contra a saturação da memória de nós mesmos, não é preciso radicalizar tanto. Recomendam-se coisas menos irreversíveis do que caminhar a esmo na ponte Rio-Niterói à noite. Pode-se, por exemplo, viajar temporariamente para um lugar estrangeiro - de verdade ou por meio de um bom livro. Mas, atenção: um romance. Nunca recorra a um livro de auto-ajuda ou a qualquer produto e serviço que envolva os prefixos "auto" ou "personal". O tiro sairá pela culatra. Outra recomendação é ajudar alguém, com a expressa condição de não contar a ninguém. Tem inspiração religiosa, mas funciona. É bastante indicado também expor-se ao máximo a obras de arte, de preferência aquelas absolutamente resistentes a "interpretações pessoais". As melhores são as que "apenas" arrepiam a gente. Há quem relate bons resultados com a meditação. No entanto, pela quantidade de celebridades (celebridade = pessoa que vive do próprio narcisismo) adeptas, tenho minhas dúvidas. Nunca tentei de verdade. De qualquer forma, penso que, na falta de drogas eficientes, deveríamos nos prescrever estas doses diárias de esquecimento de nós mesmos entre amigos e familiares. Quando minha filha era pequena, lembro de meu esforço para representar, em casa, uma propaganda de frutas tão eficiente quanto à do McDonald's: "Hummm... Nossa... Que delícia de abacaxi! Tão doce e ainda por cima é cheio de vitamina C, que ajuda a dar cambalhotas!" Talvez, para contrabalançar tanta pressão de sermos garotos-propaganda de nós mesmos, aumentando nosso capital de convencimento na internet ou nas relações de trabalho, deveríamos trocar dicas e experiências sobre práticas de auto-esquecimento. Algo como: "Hummm... Que máximo... Foi como entrar num filme ou ser personagem de um livro. Melhor que spa! Fiquei três dias longe do Facebook e do Twitter enquanto caminhava como um estrangeiro nas ruas do centro do Rio. E sem tirar nem uma foto! Você tem que experimentar!" Para finalizar, e antes que eu me esqueça (ops), há outra prática bem boa que descobri recentemente: escrever ficção. O único efeito colateral é a possibilidade de ser assombrado pela memória de um personagem.... Marta Barcellos |
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