Sexta-feira, 1/6/2012
O fim do livro didático
Marcelo Spalding
O livro assistiu à conquista dos mares e do espaço, ao massacre de tribos inteiras, à construção de aldeias que viraram cidades que viraram metrópoles, a Grandes Guerras Mundiais, a Cismas e Revoluções no Oriente e no Ocidente; contribuiu com o surgimento de nações fortes e líderes sanguinários, de ideias que originaram a eletricidade, o avião, o telefone, a bomba atômica, o rádio, a vacina, o cinema, a genética, a internet; consolidou línguas, perpetuou religiões, criou mundos imaginários. O secular e sagrado livro, atravessou um milênio inteiro — o das luzes, o das invenções — praticamente incólume, soberano numa era de rápidas transformações tecnológicas, nos fazendo acreditar que ele, o livro, era realmente como a colher, o martelo, a roda ou a tesoura. Mas não.
Nem o livro — e talvez nem a colher, a roda ou a tesoura — está livre de transformação nessa passagem do mundo analógico para o mundo digital, do mundo de átomos para o mundo de bits, o que tem provocado verdadeiro alvoroço em uma geração nascida e criada em meio a (muitos) livros. Sim, muitos, porque se em 1427 havia apenas 122 livros na Universidade de Cambridge, hoje são mais de 150 milhões de volumes mantidos em 150 quilômetros de prateleiras só na nesta Universidade.
Tal profusão é sinal de que o livro não conquistou apenas as estantes, mas também o coração e o imaginário de seus leitores: "É preciso reconhecer o mundo como um grande livro", nos dirá Guilherme de Baskerville, o frade franciscano protagonista de O Nome da Rosa; "Liesel quase puxou um título do lugar, mas não se atreveu a perturbá-los, eram perfeitos demais", contará a protagonista Morte em A menina que roubava livros; "Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante", revelará Clarice Lispector no antológico conto "Felicidade Clandestina".
Há algum tempo, porém, o livro não é mais o único a transmitir essas histórias, sonhos, medos, lições, tem dividido bastante de seu protagonismo com o cinema, a televisão, agora a internet. Sem contar que cada vez mais a escrita em geral — e a literatura em particular — encontra novos e variados suportes digitais com características distintas e capazes, inclusive, de modificar o texto em si, numa revolução que o estudioso Roger Chartier considera "com poucos precedentes tão violentos na longa história da cultura escrita".
Nesse aspecto, o próprio objeto físico tem sido rediscutido, com alguns prevendo que ocorrerá com o livro o mesmo que com os discos ou os filmes fotográficos: uma transposição do seu formato de átomos para um formato de bits, digital. É nesse contexto que foram lançados há algum tempo aparelhos como o Kindle e mais recentemente aparelhos como o iPad, com telas já muito melhor adaptadas à leitura do que as telas dos notebooks ou PCs. Dizer que os aparelhos digitais irão substituir por completo a milenar tradição de livros impressos, entretanto, é tão leviano quanto ignorar sua presença ou lutar contra ela.
Livros de referência, como enciclopédias, atlas, dicionários, guias, legislações e manuais, fazem muito mais sentido numa plataforma digital do que no papel. Por pelo menos duas razões: a facilidade de consultas precisas e a facilidade de atualização. Só interessa a um mercado tradicional e um tanto viciado que um estudante compre o mesmo livro a cada ano, preocupado apenas com a mudança de uma ou outra lei que foi alterada naqueles meses, por exemplo.
Na sala de aula, da mesma forma, livros didáticos grossos e caros são cada vez mais anacrônicos (ainda que coloridos e bonitos), e não pela questão pedagógica, tão bem discutida há algum tempo por nossos colegas pedagogos, mas pela questão tecnológica. Fazer os pais comprarem uma caixa de livros didáticos de editoras e autores que se repetem, conjunto de livros cujo valor ultrapassa o de muitos tablets, é hoje tão justificável quanto a compra da última versão da Barsa pela biblioteca da escola.
Em livro chamado "A sala de aula interativa", Marco Silva, ainda no ano 2000, já defendia o uso de ferramentas tecnológicas em sala de aula, mudando não apenas os materiais, mas também o método de ensino:
"A sala de aula interativa seria o ambiente em que o professor interrompe a tradição do falar/ditar, deixando de identificar-se com o contador de histórias, e adota uma postura semelhante a do designer de software interativo. Ele constrói um conjunto de territórios a serem explorados pelos alunos e disponibiliza co-autoria e múltiplas conexões, permitindo que o aluno também faça por si mesmo. Isto significa muito mais do que 'ser um conselheiro, uma ponte entre a informação e o entendimento, [...] um estimulador de curiosidade e fonte de dicas para que o aluno viaje sozinho no conhecimento obtido nos livros e nas redes de computador'. O aluno, por sua vez, passa de espectador passivo a ator situado num jogo de preferências, de opções, de intercompreensão. E a educação pode deixar de ser um produto para se tornar processo de troca de ações que cria conhecimento e não apenas o reproduz."
Um livro didático, como se sabe, é a reprodução de um discurso e de uma construção feita fora do contexto do jovem aluno, desconsiderando suas particularidades e reduzindo sua participação a preencher de lacunas. Aplicativos didáticos, embora hoje sejam muito caros, aos poucos podem ser desenvolvidos pelas universidades de cada cidade, numa parceria entre cursos de informática e educação, por exemplo, considerando a linguagem, a região e a realidade social em que estão inseridas as escolas, bem como as propostas educacionais de cada instituição.
Com isso, talvez fosse possível investir parte do valor milionário que hoje é gasto em livros didáticos em livros de literatura. Livros em papel, que seja, pois ainda que haja — e cada vez mais — literatura nas mídias digitais, temos e por muito tempo teremos boa literatura nos livros impressos. E a literatura, quando bem trabalhada, incentiva os jovens a ler, aprimora técnicas de leitura, raciocínio, compreensão, o que no final das contas é fundamental para qualquer disciplina.
Mais importante do que o uso de livros didáticos (ou mesmo de aplicativos didáticos) é o gosto e a capacidade de leitura, pois sem a leitura em breve não teremos mais livros — nem digitais, nem impressos; nem literários, nem didáticos. E dá para imaginar um aluno estudando apenas por aqueles tutoriais em vídeo de qualidade duvidosa? Que se permita o surgimento de novas tecnologias em sala de aula, mas que se preserve o que de melhor a tradição escolar construiu.
Marcelo Spalding
Porto Alegre, 1/6/2012
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