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Sexta-feira, 20/7/2012
O que você comeu no café da manhã?
Marta Barcellos

Numa das histórias mais bizarras do filme Para Roma com amor (só perde para a estrelada pelo diretor Woody Allen), o personagem vivido por Roberto Benigni fica famoso do dia para a noite. Típico cidadão de classe média, que reclama de novidades ameaçadoras à sua rotina, como a tecnologia que tira empregos e o avanço chinês, Leopoldo Pisanello subitamente é perseguido por paparazzi e jornalistas interessados em saber o que comeu no café da manhã, se prefere dormir de bruços ou de frente, com que mão escova os dentes.

Como ele prefere suas torradas?, pergunta a jornalista, séria, no estúdio de TV onde o pacato funcionário vai parar. O filme está no começo e por vício ainda aguardamos alguma espécie de explicação para a intempestiva celebrização do personagem. Ele teria sido confundido com alguém? Mas logo lembramos: epa, nada de esclarecimentos realistas, é um filme de Woody Allen. Melhor assim. Podemos nos deleitar com as piadas e embarcar nas situações inusitadas.

Mas, na saída do cinema, o papo é inevitável. Interpretar. Quais foram as vítimas da ironia do diretor, em cada um dos quatro episódios que correm paralelos? Consta que os italianos vestiram a carapuça como um todo, e ficaram até indignados com a forma como foram tratados no filme. Pode ser. No caso da história de Benigni parece haver um consenso da crítica especializada de que a zombaria de Allen tem como endereço a indústria da celebridade, com certa origem italiana - daí inclusive a denominação "paparazzi".

Já eu associei a ironia a outra questão. Talvez por andar desatenta a revistas de celebridades ou canais de fofocas, as situações do filme me lembraram mais as fotos de pratos e os comentários banais sobre rotina postados nas redes sociais. Depois do impacto inicial da cena do estúdio de TV, não é mais a aleatoriedade da fama que causa estranhamento no filme (pessoas são famosas porque são famosas, ora), e sim a exposição do íntimo e privado no espaço público.

Estranhamento à parte, o episódio não nos parece familiar porque sabemos da existência de uma indústria que persegue artistas ou jogadores de futebol. Não foi por meio dela que você soube qual prato alguém - um tanto distante - comeu no almoço de domingo, ou que esta pessoa acordou cheia de preguiça para trabalhar. Você não tinha interesse, mas acabou sabendo, se sentiu próximo a alguém que não era próximo, e afinal a sensação não é ruim. Você começou a se acostumar com essa "evasão de privacidade", tão simpática, humana, camarada. Algo natural e espontâneo - não fosse o fato de ser estimulado pela indústria da tecnologia, tão eficaz para mudar nossos comportamentos. Você era alguém discreto, gostava de ser assim. Mas parecia rabugento com essa mania de freqüentar o espaço público da internet de forma tão compenetrada. Um dia, rendeu-se a algum estímulo novo, um botão, uma solicitação, colocou a foto da festa, você na viagem. Ou, sucesso retumbante, compartilhou bichinhos e crianças.

É um nivelamento por baixo, claro. Quem não tem muito a dizer, porque é famoso apenas porque é famoso, pode compartilhar sem problemas o que comeu no café da manhã ou a sua forma de escovar os dentes. Parece mesmo democrático - talvez daí a simpatia que tudo isso gera. Mas imagine se todo o espaço público, que em sua origem era um espaço político e intelectual, for tomado pelo privado desta forma. Imagine o tempo que perdemos se somarmos os segundos de atenção dados a intimidades dos novos famosos que todos nós somos agora.

Se o espaço público esperar de mim apenas que eu conte o que comi no café da manhã, porque cargas d'água vou me dar ao trabalho de construir um texto com 5 mil caracteres para expressar minha opinião sobre o novo filme de Woody Allen e a questão do público e do privado?

É verdade que acabei escrevendo, porque ainda tenho o estímulo do espaço (público) do Digestivo para textos longos. Escrevi, e juro que minha próxima coluna não será sobre meus hábitos alimentares. A não ser que gerem uma crônica não sobre mim, mas sobre todos nós, a humanidade, nossos afetos e nossas idiossincrasias.

Veja bem: sou uma entusiasta do uso da primeira pessoa, pela honestidade que este caminho impõe, pelo posicionamento que ele acarreta. Por isso, depois de tantos anos condicionada à total impessoalidade do jornalismo, no qual a primeira pessoa era terminantemente proibida (não é mais), aderi à onda dos blogs. Não para confidenciar que tinha ido ao dentista de manhã, mas para me posicionar sobre aquilo que eu achava importante, ou mesmo contar alguma história pessoal curiosa, que remetia ao outro, ao público, ao debate público.

Mas os tempos dos blogs diletantes acabaram. Agora a coisa é para profissional. No lugar da caixa de comentários; Facebook, Twitter e sucessores a caminho. Outros estímulos, outras configurações. Outros interesses que fizeram da internet, afinal, um lugar lucrativo. O risco é que estejamos nos acostumando a gerar e consumir apenas o conteúdo banal de nossas próprias vidas. E sem perceber o quão comum já é conhecer a intimidade de anônimos-celebridades. Como no filme de Allen.


Marta Barcellos
Rio de Janeiro, 20/7/2012

 

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