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Segunda-feira, 19/3/2001 A resistência é vermelha Vera Moreira A Festa de Babette só poderia ser um de meus filmes favoritos, mas nas inúmeras vezes que já o assisti em cinema e vídeo, sempre fiquei com uma nota nebulosa, uma sensação contida, como se fosse uma celebração que não acontece por inteiro. Chocolate veio lavar minha alma no que me incomodava em Babette e eu não entendia exatamente. A capa de capuz de Juliette Binoche é leve e vermelha e dá o tom de todo o filme, que é uma celebração completa da vitória do humanismo sobre o fel do preconceito. O meio é o chocolate, como o é a comida em A Festa de Babette, mas a capa de capuz preta e pesada de Stephane Audran dá o clima invernal do filme, que acaba oprimindo o grande banquete. O vermelho das capas de Vianne (Binoche) e sua filha, assim como todos os matizes da cor no belíssimo figurino de Vianne, enfrentam a sisudez da pequena vila francesa de Lansquenet em 1959. Babette habita uma vila dinamarquesa em 1871, mas não seria a diferença dos anos que determinaria um clima mais ou menos sombrio nas vilas européias, elas pouco mudavam em um século. Acontece é que Lars Hallström teceu todo seu Chocolate em contrapontos com a obra de Gabriel Axel, até então a principal referência entre os filmes gastronômicos, digamos assim. Enquanto a cozinha de Babette é escura e apertada, a chocolataria de Vianne é colorida, espaçosa e decorada. Enquanto os moradores de Lansquenet espinafram Vianne na dualidade da tentação pelos seus chocolates, os velhos habitantes da vila de Babette mal se dão conta da falta de sabor de suas vidas. Enquanto a senhoria de Babette é recatada, pura e suave, a senhoria de Vianne é permissiva, inconseqüente e vivaz. Enquanto o banquete de Babette para os convivas de sua senhoria é fino e delicado, o almoço que Vianne oferece aos convidados da sua senhoria acontece ao ar livre e termina num animadíssimo baile às margens do rio. No final, enquanto Babette decide ficar na vila por julgar não ter para onde ir, Vianne decide ficar optando por abandonar sua vocação itinerante, conquistando a cidadela e o prefeito turrão. Dá uma festa sem precedentes e ainda recebe o amor do sensual Johnny Depp de volta. De qualquer forma, continuo gostando muito de A Festa de Babette com seu intimismo sombrio. Chocolate é carregado de vida e um realismo fantástico que o coloca naquela categoria de filmes que ou você gosta ou não gosta, sem maiores explicações. E aí aparecem os paralelos, com o mesmo Johnny Depp de Don Juan de Marco, a cena aérea belíssima do vilarejo que faz lembrar de Edward Mãos de Tesoura e a intensidade dos sentimentos despertados pelo alimento de Como Água para Chocolate. Para costurar a trama, só mesmo o chocolate, uma substância carregada de significado e luxúria. Tanto que já no século dezoito foi batizado de Teobroma cacao (bebida dos deuses) pelo botânico sueco Linnaeus, imortalizando a crença Asteca e Maia de que a planta pertencia aos deuses. Sempre se atribuiu a descoberta do chocolate aos Astecas, mas lingüistas modernos conseguiram reconstruir o antigo vocabulário dos Olmecas - viveram há três mil anos, sendo uma das primeiras civilizações mesoamericanas - e descobriram que nele existia a palavra "cacao". No coração da América Central Equatorial onde habitavam era quente, úmido e sombrio: condições ideais para o cultivo do cacau. Assim, muitos historiadores hoje acreditam que tenham sido mesmo os Olmecas os primeiros a usufruírem os prazeres do chocolate, que inicialmente era uma bebida fermentada amarga, feita das sementes do cacau, mas muito exuberante, tida como afrodisíaca, usada por reis e nobres e oferecida em celebrações. A sensação de prazer despertada pelo chocolate é habilmente explorada por Hallström, com Juliette Binoche se ocupando em decifrar as preferências dos hesitantes franceses e conquistando-os um a um. Mas romanticamente demora a descobrir a de Depp, que só poderia ser chocolate quente, afinal Casanova achava que essa bebida era o "elixir do amor" e o imperador asteca Montezuma bebia canecas de chocolate antes de se retirar para o seu harém. Chocolate concorre a cinco estatuetas do Oscar: melhor filme, melhor atriz, melhor atriz coadjuvante, (Judi Dench como Armand, a senhoria de Vianne), melhor roteiro adaptado (Robert Nelson Jacobs) e melhor trilha sonora (Rachel Postman). O vento norte sempre presente em Chocolate e Juliette Binoche com aquela efemeridade de seu rosto, me remeteu a Érico Veríssimo e suas encantadoras personagens femininas. "Sempre que me acontece alguma coisa importante, está ventando", costumava dizer Ana Terra, de O Tempo e o Vento. No conto-fantasia Sonata, o professor de piano a domicílio confessa: "(...) Não me parece possível retratar com palavras um rosto de mulher. O que importa não é seu formato, a cor dos olhos, o desenho da boca e do nariz ou o tom da pele. É antes uma certa qualidade interior que ilumina a face, animando-a e tornando-a distinta de todas as outras, e essa qualidade raramente ou nunca se deixa prender nem mesmo pela câmera fotográfica." Este é o resumo de Binoche em Chocolate, a força suave de uma personalidade livre como o vento, que durante duas horas se insinua para a câmera cinematográfica de Hallström, fazendo o espectador rir e chorar de prazer. É por isto que ela deveria ganhar o Oscar e que todas as mulheres um dia deveriam usar um sapato vermelho de salto alto. Vera Moreira |
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