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Quarta-feira, 9/1/2002 Virtudes e pecados (lavoura arcaica) Daniela Sandler Quando comecei a assistir Lavoura Arcaica (Luiz Fernando Carvalho, Brasil, 2001), peguei-me irritada. Não simplesmente pela afetação das imagens, mas pela sensação de déjà vu: de já ter visto tudo isso antes. A teatralidade, o ritmo lento, o lirismo fácil das figuras (pés na terra, menino sob folhas, folhagem em vulto contra o céu), e a composição rígida, quase artificial dos quadros, isolando os elementos do contexto (os pés, as folhas). Lembrei-me do Cheiro da Papaya Verde; podia ter me lembrado de outros filmes que, com mais ou menos felicidade, usam o vocabulário e a sintaxe desse nicho cinematográfico – o dos “filmes poéticos”. Por que fazer tudo isso de novo?, perguntei-me diante dos créditos iniciais. Por que repetir os recursos explorados, tão bem explorados, antes? Será que o gênero está já gasto, ou eu é que me cansei? Não tive tempo, porém, de responder às minhas primeiras impressões. Sem que me desse conta, esses meus pensamentos hostis de irritação e reprovação foram afogados pelo fluxo do filme – sons, imagens e história. Enredada, rendi-me às seqüências belas, em que música e cenas fundem-se, afinadíssimas. Não é que aquela folhagem contra o céu é linda mesmo?... As cenas, as figuras, as falas revelam aos poucos sua estranheza, desfazendo a impressão original de déjà vu. Tudo, atores inclusive, parece menos dirigido que coreografado em torno da idéia central e literária, a fonte do filme, o argumento, tirado do livro de Raduan Nassar. Não há espaço para o acaso – o diretor controla tudo, rigoroso. Não à toa, a obra foi feita em isolamento, numa fazenda onde a preparação dos atores durou meses. A produção insular ecoa a história retratada: a família centrada e auto-suficiente de imigrantes libaneses, religiosa, tradicional, clivada do mundo em tempo e espaço, cujos vínculos externos estendem-se apenas às gerações (prévias e vindouras) de mesmo sangue. O núcleo familiar, que, como recurso dramático, poderia ser símbolo universal, funciona no entanto como universo excepcional. Um dos filhos, André, ama sua irmã Ana. O incesto detona a partida de André; esta, a ruptura do círculo da família. O filme começa, aliás, quando o primogênito, Pedro, tenta levar André de volta à casa, onde ninguém, exceto Ana, conhece o motivo da partida. Os diálogos em “tempo real” – entre Pedro e André, entre este e o pai, entre Ana e André – são intercalados com a rememoração dos eventos que o levaram a deixar a casa. Esses diálogos são diferenciados do resto do filme por sua teatralidade, marcada não apenas nas falas dos personagens – complexas, empostadas, de inflexões magnificadas –, mas na própria ambientação: iluminação dramática, fundo escuro e foco nos atores. Tragédia latente As demais cenas – a memória de André, e o curso dos eventos depois de seu retorno – têm poucas palavras além de sua narração, inundando-se de imagens marcantes, bela fotografia e música envolvente. É fácil perder-se nessas seqüências em que a câmera se inebria nos detalhes – o sol varando os galhos da árvore, a mesa matinal envolta em luz branca, a figura sensual de Ana. Uma espécie de “teia estética” da qual é difícil se desvencilhar – difícil para nós, espectadores, e impossível para André, personagem. Ele é presa da rede cerrada da família: do poder centralizador do pai e do afeto imedido da mãe. Tanto quanto nós, André se delicia no idílio aparente da vida isolada e rural – folhas, terra e sol; pão feito e comido em família; festa e danças ao ar livre. É esse mergulho autobiográfico que revela o germe, a origem da tragédia: latente no idílio, semeada pelo afeto da mãe e pelo rigor do pai. É assim que André descreve o incesto: conseqüência absurda (porque impossível, desastrosa) da lógica do pai, para quem a família deveria se bastar – “a felicidade só é possível no seio da família”. Para André, o amor materno, transbordante e físico, corrompe em vez de redimir, como se houvesse sido uma iniciação nos modos do incesto. Aí, novamente, o caráter de exceção, já que os outros irmãos se encaixam, em harmonia, na regra familiar. Ana e André são desviantes, diferentes, os dois irmãos que a vitalidade e o sexo fazem rebeldes à doutrinação paterna. Ainda que a catástrofe ocorra pelo desvio, pela aberração, o filme sugere que suas causas derivam do legado “arcaico” da família. O pai define a sucessão familiar como imbricação e dependência: cada geração vive da lavoura plantada pela geração anterior, e planta nova lavoura para alimentar a próxima. A tragédia de Ana e André é filmada como o desfecho, o resultado dessa lavoura imemorial. Não é praga, mas colheita. Somos, como a família, vítimas do idílio. No entanto, ainda que os personagens sejam imersos em sofrimento, nós, espectadores, continuamos capturados pelo encantamento formal: o registro lírico do filme não muda, as cenas continuam belas, e até mesmo eventos desastrosos são registrados de modo tão sedutor que acabamos “gratificados” esteticamente. Se há dor no conteúdo, não há dor na sua representação, a não ser como dor estetizada. A opção fica clara na seqüência final, filmada como um balé, em especial no recurso à metonímia visual. Tentação da forma É esse, talvez, o pecado do diretor, Luiz Fernando Carvalho: render-se incondicionalmente ao próprio virtuosismo estético (de que a longa duração do filme é também um sinal). Nas palavras do pai, a paciência é a virtude fundamental (como a exortar não apenas o filho, mas também a platéia). Mas o diretor esquece outras virtudes artísticas igualmente importantes – a concisão e o recato. Se a complexidade estética é justamente o maior encanto do filme, há um ponto em que ela transborda, excessiva, e torna-se afetação, formalismo. Concedo que isso possa gerar um estado emocional intenso na fruição do filme, o que explica o sucesso de público, mas arrisca-se produzir, em vez de iluminação artística, o afeto momentâneo, o efeito que se esvai quando a trilha silencia. Não surpreende que entre as qualificações que o filme recebeu de críticos estejam “frio”, “belo” e “exercício formal”. Como corolário da tentação formalista, enfileiram-se pecadilhos menores: lugares-comuns que destoam do rigor compositivo e fazem pensar de novo no sentimento de déjà vu, ou pior. Por exemplo, o paralelo formal explícito entre Ana e a ovelha negra do rebanho que ela tange. Ou a comparação da sedução de Ana por André com a captura de uma pomba, que ele prendera (e depois soltara) ainda criança. Essas duas imagens são desnecessárias à compreensão do filme, redundantes. Clichês pisados assim só funcionam se justificados por necessidade artística das grandes... Não que isso comprometa a obra em seu todo. Lavoura Arcaica impressiona para além do formalismo e fornece momentos memoráveis, em especial o diálogo entre André (Selton Mello) e o pai (Raul Cortez). Raul Cortez consegue manter, ao mesmo tempo, a teatralidade das falas e o naturalismo do meio (cinema): declama o texto respeitando sua complexidade e o artifício da cena, mas as palavras soam inatas, inevitáveis, como se outra coisa não pudesse sair de seus lábios. É teatral, não forçado. A isso, junta expressividade física que, mesmo com o personagem sentado e quase imóvel, comunica imensa variação e intensidade emocionais (excelente exemplo de virtuosismo contido, talento e concisão). Sua interpretação vale o filme. Selton Mello havia brilhado no diálogo também teatral com o irmão Pedro, no início do filme, alternando os rompantes de emoção do personagem com a imersão em uma tristeza quase irremediável. Sua cena com Ana, na capela, é de arrepiar – ainda mais se levados em conta o texto e os gestos difíceis. No entanto, empalidece no embate verbal com o pai (talvez por contraste com Raul Cortez?), ora vencido pela artificialidade do texto, ora tomado pelo exagero na interpretação. Mas as virtudes compensam as fraquezas – o que, aliás, pode ser dito em relação a Lavoura Arcaica como um todo. Daniela Sandler |
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