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Quinta-feira, 6/9/2012 Dê uma lidinha Elisa Andrade Buzzo No momento em que escrevo esta linha, acabo de ouvir "vou dar uma olhada", e minha alma sente um estremecimento. É uma frase que ressoa com a implacabilidade de um famoso verso épico, "As armas e os barões assinalados", ou que me deixa num ambíguo sentimento de desventura, como no início de certos sonetos camonianos − "Tanto de meu estado me acho incerto", "Aquela triste e leda madrugada". Tal é o poder das palavras que, unidas − ferinas, sensatas, amadas −, podem causar sensações e opiniões díspares. Mas não condeno ninguém que fale assim e "dê uma olhada" nas coisas. O dia a dia do século XXI parece impor um "passar de olhos", no máximo. Para quando ficará o "olhar" e a leitura, não sei. Quem sabe estes conceitos estejam se reformulando mais do que nunca e eles deverão persistir, mas de outra forma, transversalmente. Um dia, talvez, assim se escreverá, pelo pastiche da coisa, depois, pela norma que será a culta. Nem julgo, pois eu mesma já me peguei pecando (mas, afinal, é errado dizer assim?) e, depois de pronunciar a frase, me veio um grande sentimento de culpa. Mesmo eu, que presto atenção às palavras e tento lhes dar o valor que lhes é devido, que reparo tanto nesse vício, recaio vez ou outra sobre ele e, finalmente dou uma bela de uma olhada. Só se for assim. Mas o que é ruim sempre dá para piorar. Pior que "Vou dar uma olhada" é "Vou dar uma olhadinha", pior que "vou dar uma lida", uma "lidinha". E nas situações mais improváveis me deparo com variantes desta expressão, ao que parece, mais do que consagrada pelo uso escancarado. Na culinária, "dar uma refogada", e então, imagino que a comida deve ficar crua, no cabeleireiro, "dar uma secada", e o penteado fica seriamente comprometido, na editoração, "dar uma lida", e o texto fica male e mal revisado. Parece mesmo que há apenas dois verbos passíveis de aceitarem as condições precárias já mencionadas, pois então seria possível "dar uma escrevida" ou "dar uma morrida"? Quando o caso é de vida ou morte são necessários meios reais e coragem. Só consegui chegar a duas conclusões diante desse fantasma rondando os seres falantes. Como a explicação é frouxa, nada científica, e não quero me comprometer, creio que posso dizer que vou "dar uma tentada". Há dois pontos: o vício veio da língua inglesa, como no caso já largamente comentado "eu estarei fazendo [isso]" (I will be [...]). Não, meu amigo professor me dissuadiu da ideia de que "vou dar uma olhada" viria de "I will take a look", por exemplo. A tradução para o português desta expressão seria "vou olhar". Nosso problema, portanto, dificilmente trata-se de um anglicismo. Então, agora podemos seguir a segunda linha de raciocínio e considerar um aspecto mais sutil da origem de tal expressão, ao tentar adentrar na mentalidade do brasileiro. Tal conceito de "dar uma + verbo" surpreendentemente abarca diversas classes sociais e aqui podemos considerá-lo como parte do tal "jeitinho brasileiro". Pelo que percebi durante o tempo em que o ouvia, sua premissa é o ato de fazer algo sem comprometimento. Caso algum erro passe, não há maiores implicações, pois de antemão foi avisado que seria apenas "uma olhada", uma olhada "básica", talvez alguém poderia emendar. Pois então, no momento mais crítico, em que mais se precisa de atenção é que se opta pela espiada despojada? Outras facetas da língua portuguesa falada em São Paulo também me intrigam, e o ponto que as liga é a porção emocional que a língua faz transparecer, quem sabe sutilmente. Ônibus lotado. Alguns passageiros se exaltam ao perceber que podem perder seu ponto de parada. Um grita, ou então, é em coro, "Vai, descer!!!". Quem "vai", "ele"? Não, "eu", logo o mais lógico seria dizer "Vou descer" (ou "vamos descer", num pitoresco ímpeto coletivo). Uma das características sempre ditas do povo é sua capacidade de se solidarizar nas situações emergenciais, e essa pode ser uma delas. Depois do aperto, tudo volta ao normal e a paz do empurra-empurra reina nos coletivos. Assim, também terei meus momentos de solicitude e vou entender as limitações do olhar. Elisa Andrade Buzzo |
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