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Segunda-feira, 25/2/2013
Independência
André Julião

Ao descer do ônibus, respiro fundo e parto para mais uma jornada de aprendizado sobre o ser humano. Minha rotina quase diária passa pelas ruas da Lapa de Baixo, um microcosmo onde tudo que é insólito parece conviver em relativa harmonia. O primeiro choque de realidade se dá ao sair do terminal rodoviário do bairro. Para chegar ao prédio onde trabalho, preciso passar pelos domínios da velhinha independente.

Ela mora sob um viaduto, na saída do terminal, onde divide o espaço durante o dia com passantes como eu e vendedores ambulantes e, à noite, com outros moradores de rua como ela. Chamá-la de moradora de rua, no entanto, é simplificar a condição desta senhora encolhida, com a pele talhada pelo sol e pelo tempo. São rugas que não deixam transparecer o quanto ela sofreu ou foi feliz em suas muitas décadas de vida.

O certo é que sua face é mais serena do que a de muitas senhoras que passaram a vida odiando a própria condição; que não puderam realizar seus sonhos por força dos costumes; que se casaram adolescentes ou nunca se casaram e, por uma coisa ou por outra, tornaram-se amargas. Essas, sim, adquirem uma feição permanentemente pesada, como se o mau-humor fosse um estado imutável.

Mas voltando à minha colega de Lapa de Baixo, ela não se comporta como alguém que vive ao relento. Quem passar pelo que ela transformou em lar sempre a encontrará realizando alguma tarefa doméstica, seja lavando uma peça de roupa ou levando um grande pedaço de papelão de um lado para o outro - o papelão é um material valioso para quem não dispõe de um colchão. Será possível ainda encontrá-la fazendo uma refeição ou penteando os cabelos brancos e crespos.

Um dia a vi passando um batom, enquanto olhava o resultado num pedaço de espelho. É de se imaginar que um item daqueles seja algo raro entre seus poucos pertences, acredito então que ela queria aproveitá-lo ao máximo. Por isso, esfregava o bastão vermelho por todo o rosto - da testa ao queixo.

Confesso que me dá um nó na garganta quando presencio cenas como essa. Imagino a pequena senhora atormentada, portadora de esquizofrenia ou algo do gênero. Por outro lado, levo em conta que, se há uma vantagem de se morar na rua, é que não é preciso dar satisfações a ninguém. E se você acha ou ganha um batom, e não tem mesmo ocasião para usá-lo, porque não pintar o próprio rosto só para dar risada de si próprio?

Ultimamente tenho pensando que a condição dela não é, necessariamente, digna de pena. E se, cansada de uma família problemática, ela simplesmente saiu andando, deixando tudo para trás? E se em sua antiga casa a tratavam como uma criança problemática? É fácil se dizer independente quando você tem dinheiro no banco. A quem depende dos outros, só resta a piedade alheia ou a rua.

É claro que a verdadeira história dessa senhora está longe de poder ser deduzida por um jovem escriba de classe média a quem a vida deu tudo. No entanto, não custa fazer um esforço para repensar os conceitos de sucesso, independência e bem-estar. Caso essa possibilidade aqui lançada seja real, será que ela não é mais feliz hoje do que seria se continuasse na condição anterior? Eu nunca a ouvi reclamar. Diferente de muitas senhoras "independentes" que encontro por aí.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no blog Observatório de Gente.

André Julião
São Paulo, 25/2/2013

 

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