|
Terça-feira, 26/2/2013 Gerald Thomas: arranhando a superfície do fundo Jardel Dias Cavalcanti A escolha óbvia: título de um desenho. Um tubarão afogado em um copo d'água. Um simples desenho de caneta sobre papel, retirado do caderno de anotações de Sturmspiel (peça escrita e dirigida por Gerald Thomas em 1989). Linhas singelas, mas que desenham o que pode ser uma metáfora perturbadora da condição do artista. O tubarão reaparecerá em várias das obras plásticas de Gerald, que agora podem ser apreciadas no livro Arranhando a superfície, publicado pela editora Cobogó, do Rio de Janeiro. O livro apresenta um amplo conjunto de desenhos e ilustrações, coloridos ou em preto e branco, feitos em cadernos (como notas de projetos), alguns para cartazes de peças, outros para capas de revistas ou para publicação no The New York Times, Vanity Fair etc. Junto aos desenhos, textos de Isabel Diegues, Zuenir Ventura e Antonio G. Filho que apontam leituras e narram a trajetória de Gerald em relação às artes plásticas. Que perdoem ao crítico o uso subjetivo do adjetivo, mas são desenhos belíssimos. De uma beleza que, indo além, não dispensa o pavor. Manchas de sangue, deformidade corporal, feridas abertas, gargantas escancaradas em vômitos verdes ou vermelhos, figuração humana grotesca como bestas num circo de horrores, arquitetura absurda, objetos já sem função e carcomidos pela ferrugem e animais aprisionados. Um mundo de imagens para lá de temíveis. Não é diferente do que sempre vemos nas peças de Gerald Thomas. E não podemos pensar o artista dividido entre uma atividade e outra: artes plásticas e teatro. A plástica de seu teatro é criada como pintura, na qual luzes e sombras, corpos e gestos, gritos e sussurros compõem esse mesmo circo de horrores. Sua música, na mesma medida, dramatiza, ao máximo, essa plástica. E a preparação de uma cena pode antes ser um desenho, como também um desenho pode ser o resultado de uma cena. E um desenho pode vir a fazer parte do cenário. Se existe uma arte total (sonhada por Wagner), existe também o artista total, aquele que desenha, pinta, compõe, encena, ilumina e escreve. Pensa tudo ao mesmo tempo, e para isso precisa fazer uma arte que abranja todas. O caso de Gerald Thomas não é raro, quando sabemos das experiências de desenho e manchas criadas por Victor Hugo (que também misturava tinta e café para desenhar), ou os desenhos de Henri Michaux, para quem o material de desenho e pintura era tão importante em sua mesa quanto o caderno de anotações de seus textos. Também o cineasta Eisenstein, entre outros artistas, fazia da obra plástica o preparo para seu trabalho cinematográfico. Em todos esses casos, o desenho, a pintura e a ilustração ganham vida própria, respirando com enorme potência, para além de sua função inicial. Os desenhos criados por Gerald Thomas conseguem unir vários universos artísticos sem perder o seu poder expressivo, motivo que prende imediatamente o espectador: de uma figuração que faz pensar em Rauschenberg e outros artistas da pop art (pela delicadeza das composições), às cores penetrantes da pintura e o desenho seguro que indicam uma proximidade com a arte dramática de Philip Guston, passando pelos terrores do cinema e da pintura expressionistas, até o deformador de corpos (e da pintura) que foi Francis Bacon. E não podemos deixar de mencionar Saul Steinberg, que talvez seja, no que diz respeito aos desenhos para o The New York Times, a influência mais marcante. O material usado para a criação dos desenhos e ilustrações, do ponto de vista técnico (e por que não também da expressão?), são tinta naquim, café, lápis de cor aquarelado, caneta, bico de pena, tinta; usados sobre papel canson, Fabriano, cartolina, Schoeller e papel de caderno escolar. Além do desenho, aparecem nas composições, aqui ou ali, algumas colagens como as de recortes de jornal, palavras, band-aid. Gerald Thomas provém de uma tradição de vanguarda, portanto não se pode interpretar de forma fácil seu trabalho. Se assim o fizéssemos estaríamos negando o próprio princípio de uma arte que não se dobra ao realismo fácil, à narrativa clara, ao entendimento óbvio. Aproveitando o acaso das manchas de café, ou rabiscando uma linha sem muito sentido inicial, depois desdobrando tudo isso sob a forma de cores também jogadas sem muito controle, a obra aparece e se presentifica potencialmente. Como artista à flor da pele, Gerald pretende com seus desenhos expor a "anarchy-orgy" deste mundo e seus próprios sentimentos sobre o mesmo. Nesse sentido, a representação do tubarão se torna aqui uma das figuras mais importantes na galeria de seus desenhos. Reaparecendo inúmeras vezes, o tubarão está sempre amarrado, machucado, afogado em um copo de água, ao lado de uma crucificação, sangrando ou enfaixado. Encarnação, talvez, da figura do artista (e, em determinadas circunstâncias, autobiografia imagética do próprio Thomas), o tubarão é força, habitante das profundidades e, deslocado de sua natureza marítima, um ser frágil. A condição da fragilidade do artista, como no tubarão que solta sangue na capa do livro de Gerald, pode ser pensada a partir da fala de Fausto: "(...) de agora em diante/ às dores todas escancaro esta alma./ As sensações da espécie humana em peso,/ quero-as eu dentro de mim; seus bens, seus males/ mais atrozes, mais íntimos, se entranhem/ aqui onde à vontade a minha mente/ os abrace, os tateie; assim me torno/ eu próprio a humanidade." Como obras que destilam as agruras do mundo contemporâneo, sua força não está propriamente no que representa, mas na forma com que representa. Exemplo é a obra "E é assim que os tabloides britânicos são feitos", de 2003, em que uma vagina explode em respingos de sangue, sobre uma perna aberta e escancarada ao máximo de sua flexibilidade, em que ainda aparece a inscrição "anarchy orgy". Retrato de uma época que se consome na sede de aparição exibicionista, quando se educa e se fabrica o gosto pela violência, que alimenta milionários impérios midiáticos sadomasoquistas. Para dizer isso, Gerald usa recursos mínimos, bastando o contorno das pernas pela caneta, as cores vibrantes que misturam café e lápis aquarelado na agressiva violência do sexo feminino jorrando sangue e na colagem, sob o desenho, de duas palavras. O impacto da imagem é brutal, pois quer chamar a atenção imperativamente para a prática sanguinária da exploração dos instintos mais baixos do homem pela "cultura" perversa da mídia. Apreender o mundo moderno com uma arte moderna, para Gerald,é fazer uma arte da crise: formas fragmentárias, estruturas estranhas e parodísticas, ambiguidades, ironia trágica. Uma arte para uma época fragmentada, doente e estranha deve necessariamente colocar as tripas desse mundo para fora. A possibilidade de uma leitura alegórica (procedimento da fragmentada arte de vanguarda) é indicada em alguns dos desenhos preparatórios de Gerald, como na criação de uma boca sustentada por uma "coluna do império das meias verdades", uma "viagem do presidente Clinton pela América do Sul", que solta o "vômito fluorescente do terceiro milênio", enquanto "lá fora o presidente da China espera para entrar". Uma ideia reunida em pequenas (e grotescas) imagens e textos que se transformam na cabeça do espectador-montador em leitura dos desdobramentos e novos agenciamentos do poder. Esses desenhos provam que o artista é quem consegue nadar até o fundo, e, se arranha apenas a superfície, ainda é a superfície do mais profundo, o tempo dos "homens ocos", denunciado por T. S. Eliot, que não deixou de existir. E artistas, para não deixar esse mundo impune, também não deixam de existir. Gerald Thomas é um desses artistas resistentes, tanto nos seus desenhos, como no seu teatro, sempre além de qualquer superfície. Para ir além: Jardel Dias Cavalcanti |
|
|