|
Terça-feira, 26/2/2013 Gerald Thomas: arranhando a superfície do fundo Jardel Dias Cavalcanti O livro apresenta um amplo conjunto de desenhos e ilustrações, coloridos ou em preto e branco, feitos em cadernos (como notas de projetos), alguns para cartazes de peças, outros para capas de revistas ou para publicação no The New York Times, Vanity Fair etc. Junto aos desenhos, textos de Isabel Diegues, Zuenir Ventura e Antonio G. Filho que apontam leituras e narram a trajetória de Gerald em relação às artes plásticas. Que perdoem ao crítico o uso subjetivo do adjetivo, mas são desenhos belíssimos. De uma beleza que, indo além, não dispensa o pavor. Manchas de sangue, deformidade corporal, feridas abertas, gargantas escancaradas em vômitos verdes ou vermelhos, figuração humana grotesca como bestas num circo de horrores, arquitetura absurda, objetos já sem função e carcomidos pela ferrugem e animais aprisionados. Um mundo de imagens para lá de temíveis. Não é diferente do que sempre vemos nas peças de Gerald Thomas. E não podemos pensar o artista dividido entre uma atividade e outra: artes plásticas e teatro. A plástica de seu teatro é criada como pintura, na qual luzes e sombras, corpos e gestos, gritos e sussurros compõem esse mesmo circo de horrores. Sua música, na mesma medida, dramatiza, ao máximo, essa plástica. E a preparação de uma cena pode antes ser um desenho, como também um desenho pode ser o resultado de uma cena. E um desenho pode vir a fazer parte do cenário. Se existe uma arte total (sonhada por Wagner), existe também o artista total, aquele que desenha, pinta, compõe, encena, ilumina e escreve. Pensa tudo ao mesmo tempo, e para isso precisa fazer uma arte que abranja todas. O caso de Gerald Thomas não é raro, quando sabemos das experiências de desenho e manchas criadas por Victor Hugo (que também misturava tinta e café para desenhar), ou os desenhos de Henri Michaux, para quem o material de desenho e pintura era tão importante em sua mesa quanto o caderno de anotações de seus textos. Também o cineasta Eisenstein, entre outros artistas, fazia da obra plástica o preparo para seu trabalho cinematográfico. Em todos esses casos, o desenho, a pintura e a ilustração ganham vida própria, respirando com enorme potência, para além de sua função inicial. O material usado para a criação dos desenhos e ilustrações, do ponto de vista técnico (e por que não também da expressão?), são tinta naquim, café, lápis de cor aquarelado, caneta, bico de pena, tinta; usados sobre papel canson, Fabriano, cartolina, Schoeller e papel de caderno escolar. Além do desenho, aparecem nas composições, aqui ou ali, algumas colagens como as de recortes de jornal, palavras, band-aid. Como artista à flor da pele, Gerald pretende com seus desenhos expor a "anarchy-orgy" deste mundo e seus próprios sentimentos sobre o mesmo. Nesse sentido, a representação do tubarão se torna aqui uma das figuras mais importantes na galeria de seus desenhos. Reaparecendo inúmeras vezes, o tubarão está sempre amarrado, machucado, afogado em um copo de água, ao lado de uma crucificação, sangrando ou enfaixado. Encarnação, talvez, da figura do artista (e, em determinadas circunstâncias, autobiografia imagética do próprio Thomas), o tubarão é força, habitante das profundidades e, deslocado de sua natureza marítima, um ser frágil. A condição da fragilidade do artista, como no tubarão que solta sangue na capa do livro de Gerald, pode ser pensada a partir da fala de Fausto: "(...) de agora em diante/ às dores todas escancaro esta alma./ As sensações da espécie humana em peso,/ quero-as eu dentro de mim; seus bens, seus males/ mais atrozes, mais íntimos, se entranhem/ aqui onde à vontade a minha mente/ os abrace, os tateie; assim me torno/ eu próprio a humanidade." Apreender o mundo moderno com uma arte moderna, para Gerald,é fazer uma arte da crise: formas fragmentárias, estruturas estranhas e parodísticas, ambiguidades, ironia trágica. Uma arte para uma época fragmentada, doente e estranha deve necessariamente colocar as tripas desse mundo para fora. A possibilidade de uma leitura alegórica (procedimento da fragmentada arte de vanguarda) é indicada em alguns dos desenhos preparatórios de Gerald, como na criação de uma boca sustentada por uma "coluna do império das meias verdades", uma "viagem do presidente Clinton pela América do Sul", que solta o "vômito fluorescente do terceiro milênio", enquanto "lá fora o presidente da China espera para entrar". Uma ideia reunida em pequenas (e grotescas) imagens e textos que se transformam na cabeça do espectador-montador em leitura dos desdobramentos e novos agenciamentos do poder. Gerald Thomas é um desses artistas resistentes, tanto nos seus desenhos, como no seu teatro, sempre além de qualquer superfície. Para ir além: Jardel Dias Cavalcanti |
|
|