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Segunda-feira, 19/3/2001 Quando road movie encontra inocência adolescente Arcano9 Cena: um menino de 15 anos, apaixonadíssimo por uma menina loirinha linda de uns 18, uma menina apaixonadíssima por um astro do rock n'roll que a desprezou. Os dois estão num hotel em Nova York, o ano é 1973. O menino saiu à caça da menina depois que ela foi praticamente expulsa de uma festa em que estava o tal artista. Imaginando que a loirinha fosse ficar deprê com toda a história, o garoto segue seus passos até encontrá-la no quarto do hotel, tendo ela se entupido de pílulas para dormir e champagne. O menino a abraça, pergunta se ela está bem. "Sei que este não é o momento certo", diz ele, "mas queria que você soubesse o quanto eu te amo", e lhe dá um beijo na boca. A loirinha, prá lá de Bagdá, nem reage. Aí chegam os médicos para fazer a lavagem estomacal nela. Ah, meus amigos. Que cena linda, tão comovente se segue. Os médicos levam a menina para o banheiro, onde tentam convencê-la e engolir um tubo para fazer a lavagem estomacal. Enquanto a menina se debate e se contorce completamente, deprimentemente embriagada, à beira da morte, o menino senta na cama, com um sorriso ingênuo nos lábios, e observa atentamente a cena com um tom apaixonado no olhar que eu poucas vezes vi no cinema. A menina vomitando, o garoto, ah, love is in the air. E o diretor escolhe a música perfeita para esse momento: My Cherie Amour, do Stevie Wonder. My Cherie Amour!!! Nunca mais vou ouvir essa música do mesmo jeito. Falando em sorriso ingênuo, é uma aura de ingenuidade que certamente é responsável por boa parte do encanto de Almost Famous, o esperado retorno às telas do diretor Cameron Crowe, depois do estrondoso sucesso de seu Jerry Maguire, de 1996. A inocência, o desabrochar da sexualidade adolescente, tudo isso em sí já tem seu apelo, mas Crowe decidiu moldar essa história em cima dos anos 70 nos EUA, em cima de um road movie. A testosterona alegrinha dos 15 anos se junta a um ônibus que vai de cidade em cidade levando uma banda de rock, a Stillwater, na sua turnê. E aí, meu amigo, o som de fundo não é Stevie Wonder. Não mesmo... o bom e velho rock n'roll meio Deep Purple da Stillwater é a trilha sonora daqueles anos que eu não vivi, você talvez não tenha vivido também, mas que nos deixa saudosos do mesmo jeito. O garoto William Miller (o jovem ator Patrick Fugit) é um amante daquele rock e inocentemente tem o sonho de se transformar num jornalista de música, cobrindo aquele mundo mutcho loco de sexo, drogas e você-sabe-o-quê, pretendendo permanecer imune à toda a putaria. Como um Dante adolescente desfilando pelos círculos do inferno musical. Ele agrada os editores da revista Rolling Stone e recebe a missão de acompanhar a turnê do Stillwater pelo país. Na viagem, aumenta a paixão pela groupie Penny Lane (Kate Hudson, filha da atriz Goldie Hawn), a louca loirinha que ele havia conhecido em uma de suas coberturas. Penny Lane é absolutamente irresistível. Hudson consegue criar um blend perfeito de inocência e obcenidade, uma ponte sólida ligando William ao mundo do Stillwater. Veja e me fale se você não concorda. Penny Lane é apaixonada pelo líder da banda, Russel Hammond (um também incrível Billy Crudup), que por acaso se torna o melhor amigo de William e é o cara que a Rolling Stone quer que o garoto entreviste. Por aí você já entende o rolo. A inocência do filme, de Penny Lane e de William continua no mundo obscuro das drogas. Não se vêm drogas pesadas - só o ácido necessário e a maconha básica. A juventude é toda gente boa, tudo destila uma certa alegria de quem observa pela primeira vez um amanhecer. A inocência também está presente na mãe do garoto (Frances McDormand, de Fargo) que tenta salvá-lo das garras nefastas do mal, exigindo que ele volte para casa. Mais uma vez, um trabalho brilhante de McDormand, um Mãe com M maíusculo, o que também adiciona novos pontos ao currículo de Crowe. O diretor cada vez mais ganha a fama de conseguir extrair o melhor de seus atores (vide as interpretações brilhantes de Tom Cruise, Renée Zellweger e Cuba Godding Jr. em Jerry Maguire). Toda essa aura de Almost Famous me sugeria, desde o início, ter um quê de biográfica, principalmente pelo jeito em que foi contada. Por isso, honestamente não estranhei quando descobri que, de fato, tudo vinha do passado do diretor. Assim como William, Cameron Crowe também foi um jovem adolescente viciado em rock que conquista a simpatia dos editores da Rolling Stone e se atira numa vida precoce de jornalista musical. Vá ver este filme esperando essa nostalgia escondida, a mistura bem-feita de road movie com a história sobre as mudanças de um adolescente nutrido com guitarras e baterias. Mas não vá esperando ver um show (a música nunca está em primeiro plano, você chega a ficar frustrado por não ver a Stillwater tocando direito). Também Almost Famous apresenta um sentimento meio incômodo para muitos, que é a indefinição dramática do filme. Não sei dizer, se você quiser saber, se o filme é um drama, uma comédia, um romance, ou sei lá. Nos momentos em que parece que vai ficar sério, sempre tem uma piadinha. Nos momentos em que está engraçado, de repente o tempo fecha e os personagens ficam amargos uns com os outros. Eu, particularmente, acho isso fantástico. Afinal, eu sou assim, você é assim, todos somos cheios de paradoxos, não é? Arcano9 |
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