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Terça-feira, 19/3/2013 Modernidade explicada às crianças Jardel Dias Cavalcanti Apreender o mundo moderno com uma arte moderna era, portanto, fazer uma arte da crise: formas fragmentárias, estruturas estranhas e parodísticas, ambiguidades, ironia trágica - uma arte para uma época fragmentada, pluralista, doente e estranha. As civilizações que o artista deveria confrontar eram a antiga, que Ezra Pound chamou de "uma velha cadela desdentada", e a moderna, que T. S. Eliot chamou de "a terra estéril". O Zaratustra, personagem de Nietzsche, já prenunciava a tarefa que se impunha de criação e destruição: "Todo aquele que quiser ser criativo no bem e no mal deverá antes ser um aniquilador e destruidor de valores". Pound, um pouco depois, exigirá de todo artista a tarefa de "tornar novo", ir à frente de sua época e transformá-la ao mesmo tempo transformando a própria natureza da arte. A arte moderna partilhará dos elementos de revoltas e dissolução, de violência e fragmentação, de destruição e reconstrução. Elementos que darão à arte a sua ambiguidade intrínseca. Parafraseando aqui o personagem Aschenbach, criado por Thomas Mann em Morte em Veneza, o artista "tem compaixão pelo abismo - ele próprio é o abismo". Desde os corpos fragmentados por cortes radicais pelo surrealismo, aos bonecos-humanos-manequins manipulados em gestos patéticos e mecânicos no teatro e na dança, ao cinema do grotesco e do inconsciente do expressionismo, da montagem ready-made de uma roda de bicicleta com um banquinho de Duchamp e Kurt Schwitters com suas assemblage (pintura com roda dentada, por exemplo) e a Ursonate- em tudo isso, o fragmento impunha-se como desdém ao todo. Na base da modernidade, projetos filosóficos e políticos: Nietzsche denunciará o fracasso do projeto racionalista ocidental, fundado numa razão limitada, derivada do idealismo platônico, que teria levado a Europa à degeneração de suas forças vitais, dionisíacas. Criticará o cristianismo como a "moral dos escravos", anunciando a "morte de Deus". Marx denunciará o sistema capitalista, o mundo burguês, que sobrevive graças à exploração da mão-de-obra do trabalhador, submetido ao regime da mais-valia e do trabalho alienado. A vida será reificada em todos os seus aspectos, dirá depois T. W. Adorno. Freud vai desenvolver a ideia do inconsciente, criticando a razão que se acreditava dona de si mesma, mostrando que não somos senhores de nós mesmos, pois somos governados por forças inconscientes, derivadas das irracionais pulsões que a civilização tentou de todas as formas controlar para se edificar. O resultado dessa repressão é uma civilização descontente e a paixão que desenvolvemos pela violência, pela destruição, pelo instinto de morte. Desmontar, minar, reconstruir as velhas formas, ou seja, adotar a máxima do menino-poeta-pervertido Rimbaud: "Il faut être absolutement moderne". Se a palavra se desarraigou, se as imagens perderam a coerência, se pensamento e sentimento vivem separados, se o símbolo perdeu a transcendência, a arte também não poderá ter mais um significado claro. A escritura clássica não dava mais conta do presente, e a literatura tornou-se para escritores como Joyce, dentre outros, apenas um problema da linguagem. O poeta Yeats diz: "A literatura há de ter a capacidade de derrotar o real em qualquer nível". A crise da certeza, a desagregação da palavra e da imagem, parece também dizer: não podemos mais contar com o "Homem" (conceito perigosamente desconstruído por Foucault). Resta-nos a arte para dizer isso. Gregor Samsa acorda metamorfoseado em asqueroso inseto na obra de Kafka (se "o artista é a antena da raça", os inseticidas nazistas já se prenunciavam ali em Kafka). Também o início da "morte do sujeito", como na peça de Arthur Miller, Morte do caixeiro viajante, onde o personagem principal passa a vida acreditando na virtude do trabalho, acreditando que vivendo honestamente seria rico e feliz, até que é despedido e perde o senso da realidade, mergulhando numa crise profunda e desesperadora. A revelação de que o trabalhador não passa de um objeto descartável dentro do sistema capitalista. Mallarmé ressoará em Beckett na medida em que os seus textos procurarão superar a própria linguagem, tecendo constantes comentários à ironia que é utilizar a linguagem para dizer a sua inescapável insuficiência. Assumir o sofrimento, mas não de graça: o artista deixa de ser um moralista burguês, mas um criador independente, enxovalhador e perturbador da ordem do mundo. Explodir a discursividade, implodir a cultura digestiva e comercial onde "tudo existe e nada tem valor", criticar acirradamente o imenso panorama da futilidade, é não se dobrar à ordem do mundo. O capitalismo contemporâneo não deixará de desejar contaminar tudo, mesmo a arte, essa eterna manifestação da subversão de todos os valores: qualquer espécie de conduta humana se tornará permissível no instante em que se mostre economicamente viável, tornando-se "valiosa"; tudo o que pagar bem terá livre curso. Eis ai a essência do niilismo moderno. Por isso, é preciso continuar a lutar. É preciso continuar a continuar... Jardel Dias Cavalcanti |
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