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Terça-feira, 26/3/2013 O Direito mediocrizado Celso A. Uequed Pitol As aulas de Karl Von Savigny na universidade de Marburg eram concorridíssimas. As salas de aula - enormes, em forma de auditório, como era então o costume - não davam conta de tantos alunos e não foram poucas as vezes em que o mestre de Frankfurt foi obrigado a lecionar no pátio da faculdade, como um líder político num comício ou um pregador num culto. Estudantes universitários de todas as partes da Alemanha matriculavam-se no curso de Marburg - e, antes dele, no de Berlim - para assistir às famosas palestras do professor e à sua abordagem a um tempo original e conservadora do Direito. Savigny lecionava Direito Penal, das Obrigações, Possessório e Civil: em todas essas disciplinas partia pelo estudo do Direito Romano, origem comum de todos os sistemas jurídicos da Europa continental. Para ele, o Direito era produto de uma evolução histórica, sendo originário, assim como todas as manifestações da cultura, do espírito do povo - o Volkgeist -, que o verdadeiro jurista deveria ser capaz de ouvir e, o legislador, de plasmar em normas que estivessem de acordo com ele. Savigny entendia - e o demonstrou em sua obra capital, História do Direito Romano durante a Idade Média - que o Direito Romano havia penetrado de maneira tão profunda na vida dos antigos povos germânicos que, mesmo após o fim do Império, ele sobrevivera nos costumes e das crenças comuns destes povos, constituindo, assim, um patrimônio que não se poderia destacar de sua cultura. Houve mesmo semestres em que os alunos de Savigny não abriram uma só lei alemã de sua época, dedicando todo o tempo ao estudo do Corpus Juris Civilis e a sua recepção pelos juristas europeus através dos tempos, desde a débâcle do Império Romano até o século XIX. Não que isso, como frequentemente e erroneamente se diz deste grande pensador, fosse uma apologia cega à superioridade dos juristas romanos ou a uma erudição vazia e desvinculada da realidade, típica de homens de gabinete enclausurados em seu culto solitário do passado. Não por acaso, outra de suas obras-primas tinha o nome aparentemente contraditório de Sistema de Direito Romano Atual. Era o estudo do Direito Romano e de suas instituições que, para um alemão do século XIX, ainda estavam vivos. Savigny convidava seus estudantes a correrem até as bibliotecas e ocuparem as jovens mentes com os velhos manuscritos, com os corpora jura e os volumes das seções de História e Filologia, não para levitarem num delírio de cultores dum passado mítico, à Dom Quixote, mas para saírem de lá fortalecidos com a seiva que o verdadeiro passado, estudado com os pés bem firmes no presente, pode trazer aos homens. Foi o que fez o jovem aluno Jakob Grimm. Filho de advogado, oriundo de uma família com poucas posses, escolheu o curso de Direito devido às amplas possibilidades de ascensão profissional que, já naquela época, assistia aos seus graduados. Grimm queria sair da faculdade com conhecimento suficiente para se tornar um bom funcionário público, um competente burocrata e, talvez, se tivesse sorte, um magistrado. Queria, enfim, ganhar a vida. O jovem Grimm foi então ter aulas com o então também jovem Savigny, que contava à época apenas 25 anos. Ao ouvi-lo, no fundo da classe, entre bocejos premeditados, discorrer sobre os primórdios da ideia de posse, citar os antigos juristas romanos, relembrar a história de Roma, submergir nas águas profundas do passado do Ocidente e emergir para observar este mesmo Ocidente nos dias em que viviam, veio-lhe uma paixão que nunca mais largaria. Não perdeu uma só aula do ilustre professor. Tornou-se seu amigo, parceiro de pesquisas e acompanhou-o em várias bibliotecas da Europa na busca dos manuscritos de que Savigny falava em sala de aula. Até então, Grimm era um rapaz curioso por diversos temas, amante de história, de línguas, de romances. Com as aulas e a tutela de Savigny, passou a pesquisador sério e profundo. Entrou como um aspirante a bom empregado. Saiu como um aspirante a historiador. O mundo perdeu um burocrata e ganhou o maior especialista em lendas populares da Europa, grande filólogo, pesquisador e divulgador de contos infantis que, ainda hoje, povoam a imaginação das crianças de todas as latitudes: João e Maria, A Gata Borralheira, Cinderela, Chapeuzinho Vermelho, Bela Adormecida e muitos outros. Até mesmo os alunos mais dados ao escárnio e à crítica eram obrigados a reconhecer a grandeza do mestre. "Savigny é impressionante", disse um jovem renano chamado Karl Marx, assombrado com sua força argumentativa e sua erudição histórica. Posteriormente submeteria a escola histórica do Direito a severas críticas, mas não falta quem veja muito de Savigny no autor de O Capital; é o caso de Ludwig Von Mises, que considerava a influência de Savigny em Marx superior a de Hegel em alguns aspectos. Muitos outros passariam pela cátedra de Savigny, quase todos com alguma forte impressão, positiva ou negativa - na maior parte das vezes, positiva - até sua morte, aos 82 anos. Foi uma vida coberta de glórias. Quase cem anos mais tarde, o historiador do Direito Erik Wolf deu o veredicto definitivo: "Savigny estabeleceu um programa de renovação da jurisprudência com base humanística, combinando o método histórico-filológico com o filosófico-sistemático". E nós acrescentamos: um estudo que, apesar de seus erros aqui e ali, de suas imperfeições e equívocos, confere ao estudo do Direito a dignidade que a filologia (e, com ela, a história) conferem aos melhores estudos em qualquer área das ciências humanas. Em 1923, o artista austríaco Hugo Lederer esculpiu uma estátua de Savigny para ser colocada diante da antiga Biblioteca da Universidade Friedrich Wilhelm, atual Universidade Humboldt. Seria destruída pelos nazistas dez anos depois. A barbárie totalitária não apreciava Savigny e a Escola Histórica, apesar de alguns aparentes - só aparentes - pontos de contato entre ela e o discurso nazista. Não é preciso, contudo, que haja um regime assumidamente totalitário para que uma escola, uma linha de pensamento, até mesmo uma determinada postura seja banida da vida intelectual de uma nação. E não é preciso ir longe para demonstrá-lo. Se Savigny fosse professor no Brasil de hoje provavelmente seria impedido de lecionar a sua disciplina: com muita sorte, conseguiria um emprego como professor de História. A partir do momento em que começasse a recuar o estudo da Lei ao passado distante, a estudar-lhe as origens, os fundamentos históricos, filosóficos, linguísticos, enfim, tudo o que ajudou a formar e a plasmar a norma jurídica dentro do quadro da cultura presente e que ajuda a interpretar, a compreender e talvez mesmo a modificar esta mesma norma, o velho Savigny seria, muito provavelmente, expulso da sala de aula sob gritos estridentes de que não estaria ensinando o que devia. O mais triste é que o aluno a proferir tal discurso teria razão: o que se deve ensinar em nossas faculdades de Direito não é a perscrutar a origem do nosso Direito, de nossas instituições, de nossa sociedade, de tudo quanto está , diretamente ou indiretamente, ligado ao País que, sob a égide da lei, se formou e se forma diariamente. O que se deve ensinar em nossos cursos jurídicos não é este "programa de renovação da jurisprudência com base humanística, combinando o método histórico-filológico com o filosófico-sistemático". O que se deve ensinar em nossas faculdades de Direito é a sermos o que o menino Jacob Grimm queria ser antes de ter aulas com Savigny. O quadro parece amargamente descrito. Errado: não é nada além do que este articulista ouviu de um professor, numa aula de Antropologia Jurídica, quando perguntaram sobre seu método de trabalho empregue noutra disciplina que ministrava, a de Direito Penal: "Lá eu não ensino Direito Penal, e sim o Código Penal brasileiro". Não sei se o ilustre professor já ouviu falar da conhecida frase do jurista francês Bugnet, que afirmava, sem o menor pudor, não conhecer o Direito Civil e ensinar o apenas o que sabia, o Código de Napoleão. Provavelmente, não. Da mesma forma, poderiam os professores admitir, sem o menor pudor - pudor que é, muitas vezes, é sinônimo de hipocrisia e falta de coragem - que não ensinam Direito, e sim o que sabem: isto é, passar em concursos. O processualista italiano Francesco Carnelutti dizia que o jurista que é somente jurista é uma pobre e triste coisa. Da mesma forma, a faculdade de Direito que é simplesmente um curso em que se decoram leis, em que se prepara para o exame de Ordem e em que a excelência é medida pelo percentual de aprovação nesta mesmo exame, nada pode ser além de uma pobre e triste coisa de consequências nefastas não só para o futuro do Direito mas para a própria vida intelectual da Nação. As faculdades de Direito sempre foram um espaço no qual vicejou a discussão dos destinos do país em todos os âmbitos, do cultural ao político, do social ao econômico, envolvendo professores e estudantes num debate multidisciplinar que terminava, não raro, na formação de grandes nomes da vida pública nacional em todos os aspectos que o termo "público" pode comportar. Como pode haver tal debate se o Direito, reduzido apenas ao Code Napoleon e seus descendentes, transforma-se em mero estudo desvinculado de tudo quanto o cerca e nele influi decisivamente? É altamente revelador que a proibição do uso de Códigos em provas acadêmicas, prática cada vez mais incentivada pelas instituições de ensino, só foi de fato implantada após o exame da Ordem dos Advogados ter tomado idêntica medida. As questões do tal exame, de múltipla escolha, impedem o estudo aprofundado e a análise das minúcias que qualquer tema jurídico naturalmente traz. Exigir de uma ciência humana - ou do Espírito, como outrora se dizia - que apresente respostas únicas e definitivas, a serem marcadas com caneta esferográfica sem possibilidade de discussão posterior é negar os próprios fundamentos da ideia de ciências humanas. Tal método, se empregue num exame de admissão profissional, é equivocado; expandido para o estudo acadêmico será a causa de uma verdadeira catástrofe intelectual. A consagração da nova mentalidade está consubstanciada no termo que, desde há pelo menos vinte anos, se escolheu para denominar o que um dia chamou-se jurista: operador do Direito. Não estudioso: operador. Como o operador de máquinas do sempre atual Tempos Modernos, de Charles Chaplin, que limita-se a agir mecanicamente para produzir o máximo com o mínimo de tempo. No filme de Chaplin, o operador em questão continuava a agir mecanicamente ao fim do serviço, apertando parafusos imaginários num objeto que não existia. Findo o estudo universitário, o operador do Direito sairá para a vida profissional e operará com maestria aquilo que conhece. Responderá, com a devida precisão, às questões do exame de Ordem para as quais exaustivamente estudou durante os cinco anos de curso (e no ano de curso preparatório que, quase que certamente, acabou por ter de matricular-se). Provavelmente operará o que aprendeu em seu dia a dia, seja qual for a área que escolheu. Tornar-se-á uma pobre e triste coisa, pronta para continuar a manejar a chave de fenda, para apertar o parafuso e para destruir estátuas de grandes nomes da cultura ocidental quando mandarem fazê-lo. Celso A. Uequed Pitol |
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