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Quinta-feira, 7/3/2013 Necrológico da Biblioteca Viegas Fernandes da Costa "Durante décadas meu pai viveu trancado na biblioteca que toma todos os cômodos da casa. Por causa dos livros nos abandonou, como se um monte de papel mal cheiroso pudesse substituir o mais irrelevante afeto de uma família. O velho arredio que jamais me fez um carinho era cheio de cuidados com livros em frangalhos, numa perversão que me repugnava." É assim que Miguel Sanches Neto dá início ao conto "A segunda morte de meu pai", no qual narra a investida de um filho contra a biblioteca paterna de vinte e cinco mil exemplares por ele herdada. Outro dia a repórter de um jornal diário perguntou-me se acaso eu saberia lhe indicar duas ou três pessoas que abrigassem em suas casas uma biblioteca modesta. Não me ocorreu ninguém. Daqueles que lembrei, constatei estarem mortos. Percebi então, claro, que os tempos são outros, diferentes daqueles em que ostentar estantes abarrotadas de cartapácios era sinal de distinção social e intelectual. Na década de 1970, por exemplo, diretores de pornochanchadas recorriam às estantes com livros para figurarem em seus filmes, estrategicamente posicionadas ao lado do bar doméstico com suas garrafas de whisky, absinto e vinhos exóticos, outro elemento distintivo. Tratava-se, claro, de tentar burlar os vigilantes da moral. Afinal, sacanagem regada a Camões e um legítimo Porto não podia receber o destrato de uma censura acostumada com Carlos Zéfiro e Caninha 51. De qualquer modo, não é mais assim. Nem as pornochanchadas seriam censuradas hoje, nem as bibliotecas particulares encantam as novas gerações. Na pretensa assepsia dos dias que correm, o papel cheira mal, abriga toda sorte de pragas e fungos e ocupa espaço imenso. Uma biblioteca particular entoa os ecos de um limbo para seus prováveis futuros herdeiros (filhos, netos ou sobrinhos de algum vetusto bibliófilo). Está lá para ser destruída tão logo morto seu proprietário, e até a maior parte dos bibliotecários teme ante o anúncio da chegada de uma grande doação de livros pertencentes a alguma coleção particular, isto quando não a rejeitam, impiedosamente. Falta espaço, pessoal especializado para triagem e higienização, e os materiais para o restauro são caros. Enfim, bibliotecas particulares, apesar de cada vez mais raras, transformaram-se em enormes elefantes brancos. No conto de Miguel Sanches Neto lemos o ódio de um filho aos livros do pai morto. Eliminar a biblioteca herdada equivale a uma espécie de acerto de contas. Afinal, se toda biblioteca particular carrega consigo uma personalidade, destruí-la corresponde a algo como que um assassinato. Entretanto, o ato extremo do personagem do conto em questão não se constitui em regra, e a maioria das pessoas procura dar destino mais nobre aos livros órfãos do seu bibliófilo e descabidos na nova realidade. Quando não conseguem vendê-los a algum sebo que os compra a quilo, procuram a biblioteca mais próxima para então doá-los, cercados de memória e pompa. Nestes casos, tomamos os doadores com certa compaixão, pois estes tentam preservar o tênue legado de uma vida dedicada aos livros. Acorrem às bibliotecas transbordando entusiasmo e alívio. Entusiasmo porque acreditam sinceramente na importância inesgotável e no valor inestimável do material que disponibilizam, e alívio porque poderão usufruir do espaço desocupado da maneira que julgarem mais adequado, sem ofender a memória do falecido (o que certamente aconteceria se destinassem tudo para usinas de reciclagem de papel). É assim que chegam às prateleiras públicas alguns volumes dedicados com ternura, como se espalhássemos ao vento os sussurros de uma noite de amor. Páginas vincadas e rascunhadas, números de telefone cuidadosamente anotados a um canto da margem, uma nódoa de história particular. Isto, claro, quando aceitos assim impuros por algum bibliotecário excepcional zeloso de seu ofício. Na maioria das vezes, porém, estes livros sofrem duplo assassinato: indesejados pelos herdeiros e descartados pelo pragmatismo das bibliotecas contemporâneas, são transformados em tiras de papel picado ou, na melhor das hipóteses, são limpos do seu passado, brutalmente devolvidos a uma espécie de virgindade inócua. Penso, às vezes, que o espírito de Filippo Marinetti habita as intenções da maioria dos bibliotecários que conheço, e que a biblioteconomia contemporânea é a sucessora legítima dos futuristas do início do século XX. Isto, claro, não se trata de um elogio, já que Marinetti e os demais futuristas propunham apagar o passado destruindo suas marcas. O personagem de Miguel Sanches Neto compreende como um ato de perversão a relação que o pai mantinha com seus livros. O próprio pai, em outra passagem do conto, confessa sua promiscuidade com os livros já experimentados, encontrados nas livrarias de obras usadas, aos quais cheirava, tocava, invadia as intimidades. De fato, para se manter uma biblioteca particular, há de se amar os livros, há de se construir uma relação bibliogâmica. Afinal, os livros de uma biblioteca particular não são apenas livros, no sentido daquilo que são capazes de dizer os textos e imagens impressos em suas páginas, mas objeto de fetiche. O praticante da bibliogamia, por exemplo, passa horas diante das estantes, imóvel, namorando os volumes em diálogo mudo, intenso, como que se um sentido obscuro emanasse das capas fechadas. Por isso, toda destruição de uma biblioteca particular corresponde à destruição de uma relação de amor. Sim, na pretensa assepsia dos dias que correm, o papel cheira mal, abriga toda sorte de pragas e fungos e ocupa espaço imenso. O mesmo ocorre com o amor, este amor de namorados que desfecham tiros no peito, como na poesia de Carlos Drummond de Andrade. Amor que também ocupa espaço e muitas vezes pode cheirar mal. Na assepsia do mundo moderno não há mais espaço para o amor, muito menos para uma biblioteca particular que representa o amor distribuído pelas estantes. Nota do Editor Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no blog Alpharrábio. Leia também "Decompondo uma biblioteca". Viegas Fernandes da Costa |
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