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Terça-feira, 23/4/2013
Pesquisando (e lendo) o jornalismo
Duanne Ribeiro

A crítica ao jornalismo e à mídia, em geral, me parece insuficiente, por não lidar com o seu objeto de uma forma completa, isto é, desconsiderando sua prática e tomando como foco de análise apenas a sua aparência final. Há uma distância entre o publicado e a práxis que leva à publicação, distância ou simplesmente ignorada ou exclusivamente abordada via paranoia - como nos discursos sobre Grandes Conspirações Midiáticas, que, se podem apontar para alguma verdade, distorcem e confundem por sua conta outra cota de dados. Como pesquisar de forma íntegra e consequente a imprensa? Eu tinha umas ideias soltas sobre isso, eis aqui um esboço de conclusão. O leitor não-jornalista, nessa era em que somos todos jornalistas, talvez encontre alguma utilidade, meios de pedir mais e melhor das "denúncias" eventuais.

Essas dificuldades se tornaram mais prementes pra mim porque atualmente estou produzindo um artigo para a pós-graduação em Gestão Cultural do Celacc/USP. Meu tema é a cobertura de políticas públicas na área de cultura pelo caderno Ilustrada, da Folha de S.Paulo. Meu material de pesquisa são as matérias neste âmbito publicadas entre 2001 e 2004 - na cidade de São Paulo, toda a gestão Marta Suplicy, com Marco Aurélio Garcia e Celso Frateschi à frente da secretaria de Cultura; no estado, Geraldo Alckmin governador e Marcos Mendonça e Cláudia Costin secretários; no país, Fernando Henrique Cardoso, com Francisco Weffort, e Luis Inácio Lula da Silva, com Gilberto Gil. A interpretação preliminar indica que discutir política cultural a partir da Folha é pensar sobretudo em cinema, teatro, música e artes visuais; na tensão estado versus mercado; em diversidade e inclusão (cultural e social).

Isso, entre alguns outros enquadramentos menores. Meu objetivo aí será discutir a forma da cobertura - não o conteúdo. Estamos agendados para pensar nesses termos, e não noutros - é isso o que trabalho pretende ressaltar, com respaldo, entre outros autores, no Poder no Jornalismo, livro de Mayra Rodrigues Gomes. Nesta pesquisa eu me coloco justamente na análise daquela aparência que citei no primeiro parágrafo, no produto midiático derradeiro. É o que me basta para esses meus propósitos restritos. Não obstante, se isso pode falar com bom alcance da conformação da compreensão do leitor, fala muito pouco do jornalismo em si mesmo. Assumamos que pude extrair uma "essência" da cobertura, com base em cerca de 200 textos do jornal, e assumamos que o fato de tratar de tais assuntos e não de outros, com tais enfoques e não outros, condiciona as possibilidades de reflexão do leitor. Pois bem; não posso afirmar que essa "essência" guie a edição do jornal ou o trabalho dos repórteres.

Em outras palavras, essa "essência" não pode ser posta como princípio de produção, assim, num passe de mágica. Não posso dizer: "A Folha tem uma agenda na área de cultura / tem determinada ideologia sobre este campo / seus jornalistas escrevem para cumprir tal agenda ou divulgar tal ideologia". E isso não porque seja impossível que tenha, de fato. Porém esse resultado que tenho somente demarca um sintoma, sem ter a capacidade de esclarecer como funciona a doença. O que foi posto enfim em tinta e celulose é um início, não um final.

O problema crítico nesta transposição é a simplificação do objeto. Um veículo (jornal, revista, site, o que seja) é um complexo em que se envolvem repórteres, editores e donos: a crítica costumeira à mídia atinge indiferenciadamente esse conjunto fragmentário em que se desenrolam relações de poder e saber variadas em intensidade e frequência. Acrescente-se a essa variedade os articulistas convidados, estranhos ao cotidiano de produção, e a influência de outros complexos, externos, como grupos políticos e financeiros. A mesma crítica supõe forças tremendas nesse sentido, porém não consegue rastreá-la, dizer como, quando e onde, em específico, age, se encontra resistência e de que tipo, entre outros condicionantes.

Ainda mais, existe um modus operandi próprio a cada tipo de ator nessa configuração. Se, no limite, eu conseguir atribuir ao veículo uma determinada tendência, por decisão dos donos, por mando do poder político em plantão, não consigo, no mesmo golpe, atribuir aos jornalistas, aos indivíduos, a mesma característica. O que eles cobrem, editam ou chegam a publicar é influenciado, a princípio, por sua adesão maior ou menor à ética jornalística (um, a busca por objetividade; dois, a separação entre opinião e informação, etc) e sua eficiência maior ou menor em cumprir essa ética; depois, as condições circunstanciais de publicação: competição dos assuntos por espaço (diário, semanal ou mensal...), tamanho de equipe ou equipamentos disponíveis em dado momento, assim como o tempo existente para pesquisa e redação. A comparação com o que outros veículos publicaram, o que os editorem pensam que é a demanda do público, assim como a auto-imagem do repórter enquanto repórter - os fatores em interação são múltiplos e dinâmicos.

Desse modo, quando leio frases como "estes meios de comunicação empresariais de massa (...) exercem uma censura brutal em seu âmbito de atuação" (entrevista, ao jornal Unidade, do jurista Fábio Konder Comparato), eu sinto que lhes falta sutileza. E essa falta de sutileza - de "conhecimento do inimigo" - é também causa do problema. O que não quer dizer, é bom repetir, que eu sustente não existir qualquer "censura".

Pegue por exemplo o artigo de Luiz Carlos Azenha, "Globo consegue o que a ditadura não conseguiu: calar imprensa alternativa". Avalie duas de suas afirmações: "Pessoalmente, tive uma reportagem potencialmente danosa para o então candidato a governador de São Paulo, José Serra, censurada. (...) "Tive reportagem sobre Carlinhos Cachoeira 'deslocada' de telejornal mais nobre da emissora para o Bom Dia Brasil". Há aí a influência externa; note no entanto os dois efeitos distintos que têm, o segundo encontrando menos permeabilidade. Há aí a cisão entre repórter e edição; perceba que a produção da matéria em si continuou da mesma maneira e que o jornalista foi mantido depois dela. E esses são dois casos em que o que está em jogo é politicamente grandioso - imagine os graus diferentes de intervenção e não-intervenção, externa ou interna, em matérias de menos determinância. Acima de tudo, veja que só sabemos disso tudo porque vislumbramos a prática, o ponto de vista de alguém dentro do processo. Como concluir tudo só com o levantamento dos produtos finais?

Avalie "Nem imparcial, nem engajado: o repórter como artífice da notícia", depoimento de Marcelo Canellas para o livro Políticas Públicas Sociais e os Desafios para o Jornalismo. "Há uma hierarquia de fatos jornalístico que conquistam o direito de frequentar as pautas (...). Os temas sociais, sempre tão recorrentes, perdem potência e acabam tendo de esperar na fila por alguma futura oportunidade, talvez num caderno especial de fim de ano". Pouco adiante, ele continua: "Eu mesmo levei quatro anos para convencer meus superiores de que a fome no Brasil era, sim, um fato jornalístico que merecia nova abordagem (...). É preciso entender que a dinâmica das redações é cheia de contradições e de demandas sazonais". Vê-se um filtro de outra natureza daquela citada por Azenha, tão atuante quanto, gerado por um número imenso de fatos abordáveis e pela obsessão da novidade, contraposto pelo urgência pessoal do jornalista. Assistindo à série de Canellas, essa dialética é imperceptível.

Enfim, como eu disse: um esboço. Que sirva pelo menos de antídoto contra uma falácia de autoridade muitíssimo comum nessa época: tudo que é denunciado com os rótulos "a mídia não mostra", "ninguém fala nada" e outros do gênero recebe um poder de persuasão maior, e dá ao denunciante a cara de Promotor da Verdade contra a Imprensa da Mentira. Pode ser realidade um maniqueísmo assim? Digamos que possa. Será necessário provar.

Duanne Ribeiro
São Paulo, 23/4/2013

 

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