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Sexta-feira, 12/4/2013 O escritor e as cenas: mostrar e não dizer Marcelo Spalding Seguindo a série de publicações exclusivas no Digestivo Cultural com dicas de criação literária da minha Oficina de Criação Literária Online, abordo hoje o grande segredo da criação literária: narrar. O leitor quer ler boas narrativas, boas histórias. Cuide, porém, a diferença entre narrar (to show) e contar (to tell). É a diferença entre a narrativa e o resumo. Fazer literatura não é amontoar fatos, resumos de acontecimentos. É preciso narrar cada fato, individualizando-os e envolvendo o leitor. É importante, também, que o escritor mostre ao leitor o que está acontecendo em vez de dizer, contar. David Lodge, em A arte da ficção, tem uma distinção primorosa entre cena e sumário: "O Discurso ficcional alterna o tempo inteiro entre mostrar e dizer o que aconteceu. A forma mais pura de semostrar são as falas dos personagens, em que a linguagem espelha com precisão o acontecimento (uma vez que o acontecimento é linguístico)." Isso seria a cena. "A forma mais pura de se dizer é o resumo autoral [chamado aqui de sumário], em que a concisão e a abstração da linguagem do narrador apagam o caráter particular e individual dos personagens e suas ações.Um romance escrito do início ao fim na forma de sumário seria, portanto, quase ilegível.Mas o recurso tem seus usos: é capaz, por exemplo, de acelerar o ritmo de uma narrativa, fazendo-nos passar mais depressa por acontecimentos desinteressantes." Imagina que você queira contar a história de um homem extremamente metódico que, por isso, perdeu sua mulher e seu filho. Você primeiro cria toda a história na sua cabeça ou num papel de rascunho, anota episódios e elementos de sua personalidade, de sua infância, faz uma lista das personagens com quem ele convive ou conviveu, pensa em seus atributos físicos, suas manias, etc. Você sem dúvidas tem elementos para um romance, mas irá escrever um conto de no máximo cinco páginas. A solução de um escritor iniciante seria simplesmente ir listando os fatos principais, um em cada parágrafo, e rapidamente pulando no tempo e nos informando que ele teve uma infância difícil, pois perdera a mãe muito cedo e foi criado em escola de padres, depois custou a casar, em dúvida entre o casamento ou a vida religiosa, adiante teve uma filha, embora quisesse muito ter tido um filho, depois a filha acabou morrendo, o que o causou muito sofrimento, mas logo a mulher engravidou de um menino que, apesar de ser muito diferente dele, cativou-o desde o primeiro choro. Bem, por aí vai. A essa sucessão de acontecimentos chamamos de sumários. Um escritor mais experiente, que sabe da importância de conquistar o leitor através de cenas, escolherá dois ou três episódios da vida desse homem para descrever com mais detalhes estes episódios, individualizando-os. Por exemplo, o escritor pode escolher o dia em que o menino chega na escola de padres e retira uma foto da falecida mãe; o dia do nascimento da filha e de como ele olha para o crucifixo na parede, lembrando do quão difícil foi escolher entre isso ou a vida religiosa e de quantas dúvidas tem se fez ou não a escolha certa; um diálogo entre o homem e um conhecido numa pracinha em que os filhos de ambos brincam, diálogo em que o outro brinca com o fato de o menino ser tão diferente do homem, trazendo à tona todas as dúvidas de nosso protagonista e todo o medo que ele tem de perder a criança, a quem tem tanto amor. Como criar cenasVocê pode pensar em cada cena como no cinema ou no teatro, já que o próprio conceito de cena vem do teatro. Enquanto a câmera está no mesmo ambiente, com os mesmos personagens e seguindo um tempo linear, temos uma cena. Quando ela virou a página dois, foi Rudy quem notou. Atentou diretamente para o que Liesel estava lendo e deu um tapinha no irmão e nas irmãs, dizendo-lhe para fazerem o mesmo. Hans Hubermann aproximou-se e convocou a todos e, em pouco tempo, uma quietude começou a escoar pelo porão apinhado. Na página três, todos estavam calados, menos Liesel. O diálogo, claro, é um aliado importante para manter a cena, mas evite abusar do diálogo, o bom escritor saberá dosar narrativa com diálogo, lançando mão das falas apenas quando for essencial. Os padres engasgavam-se de riso. Já duas canecas de vinho estavam vazias: e o padre Brito desabotoara a batina, deixando ver a sua grossa camisola de lã de Covilhã, onde a marca da fábrica, feita de linha azul, era uma cruz sobre o coração. Vale lembrar que na literatura, diferentemente do vídeo, o escritor pode mesclar a narrativa com reflexões do personagens, descrições do cenário, comentários próprios. Até os pensamentos de um cão, como no genial Machado de Assis, podem ajudar na composição da cena: Machucado, separado do amigo, Quincas Borba vai então deitar-se a um canto, e fica ali muito tempo, calado; agita-se um pouco, até que acha posição definitiva, e cerra os olhos. Não dorme, recolhe as idéias, combina, relembra; a figura vaga do finado amigo passa-lhe acaso ao longe, muito ao longe, aos pedaços, depois mistura-se à do amigo atual, e parecem ambas uma só pessoa, depois outras idéias. Marcelo Spalding |
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