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Quarta-feira, 3/4/2013
Mark Dery e o cotidiano virtualizado
Guilherme Mendes Pereira

"Estou comprometido com as políticas do politicamente incorreto - pensando o impensável e falando o indizível, os pensamentos ruins que enfurecem a polícia da mente nos dois extremos do espectro ideológico [...]. Eu me sinto atraído pelos recantos obscuros da sociedade, as regiões mais sombrias do self: o gótico, o grotesco, o carnavalesco - em resumo, extremos e excessos de todos os tipos. Eu quero induzir em você, meu leitor, a vertigem que vem de observar por tempo demais o abismo cultural - e então dar um amável empurrão, despenhadeiro abaixo"

(DERY, 2010, p.37).

Mark Dery - em Não devo pensar em coisas ruins: ensaios sobre o império americano, cultura digital, pornografia pós-humana e o simbolismo sexual do dedão da Madona - nos apresenta poeticamente alguns dos possíveis contextos, fluídos e incertos, da cultura e relações sociais cibermediadas. E ele vai além das causas conceituais fáusticas ou prometeicas. Articulando a oposição entre o idealismo conceitual e os desvendamento das práticas do dia-a-dia, Dery situou fantasticamente temáticas e paradoxos do trivial cotidiano. Enquanto crítico cultural, desbravou de forma irônica, divertida e ao mesmo tempo densa e reflexiva as mazelas e contradições do comum idealisticamente virtualizado.

Dery, admirador confesso das ficções de James Graham Ballard sustenta que graças as relações amparadas pelas redes telemáticas estamos nos tornando Ballardianos. Ser Ballardiano alude a maneiras de perceber e agir conforme o prisma apresentado nos enredos de Ballard e transpostos à situações cotidianas. Sob esta lógica ficcionalizada observa-se as distopias modernas, as paisagens construídas pelo homem e os efeitos psicológicos da evolução tecnológica, social e ambiental. "Após a exploração de Freud no interior da psique é agora o mundo exterior da realidade que deve ser quantificado e eroticizado".

Influenciado por essa inspiração, Dery, por exemplo, denunciou o Facebook dos mortos-vivos. Podemos agora nos reencontrar com tantos, mas ao mesmo tempo nossas interações ficam cada vez mais tênues e superficiais. Somos movidos a acumular o maior número de amigos em nossos perfis online. Compartilhamos, curtimos, lançamos pedaços daquilo que pretendemos que chame atenção e demostre nosso self idealizado. Esmolamos por curtidas e comentários. Ficamos dependentes de nossos dispositivos e interfaces, máscaras que encobrem nossas imperfeições e erros, que minam nossa espontaneidade. Circulamos entre interações sociais embriagantes e de curta duração. Encobrimos nossa realidade. Como estranhos seres espectrais andamos pelo submundo evocando impulsivamente uns aos outros, objetificando nossa amizade e reduzindo nossas relações online a um capital social medido pela contagem de cabeças.

Mas nem todos "curtem" (adotando a metáfora do Facebook) relações sociais cara a cara "intensas", "estáveis" e "plenas de afeto". É errado optar por relações virtualizadas e descompromissadas no lugar de vínculos corpóreos e antigas formas de interação social? Os tempos mudam, hábitos, valores e costumes também. É preciso parar de utopizar as coisas e procurar compreender as mudanças. Como Dery nos mostrou, talvez a virtualização dos vínculos e interações sociais e o reforço do individualismo não sejam coisas tão ruins assim. Cada um a sua maneira.

O pensador criticou também os blogs e algumas práticas de escrita atreladas a estes. Muitos blogs se prestam como ferramentas que possibilitam práticas sociais transgressoras, como o jornalismo livre de orientações "comerciais-político-ideológicas" advindas das grandes corporações de mídia. Essas variações jornalísticas podem servir como forma de legitimar/deslegitimar informações, por em cheque o que a mídia tradicional nos empurra. Mas essas práticas podem ser verificadas na maior parte dos casos como um pretenso "ativismo de cadeira". Os blogueiros escrevem e comentam em cima de matérias prontas. Não chegam na maioria das vezes as fontes da informação original a fim de captar um novo ponto de vista ou de verificar o anterior. Cobrem o que já foi coberto. Dery indicou a necessidade de ir além dos lugares-comuns oferecidos pela grande mídia. E apontou que talvez o "individualismo barroco de nossas mentes museus" seja uma saída, fazendo uma referência aos museus barrocos, idiossincráticos, curiosos e instigantes por natureza, como alguns blogs que existem como simples diários, construídos singularmente relatos de fragmentos do cotidiano, refletindo e expressando parte da natureza e espontaneidade de seus idealizadores.

E quanto ao espetacular no ciberespaço transfigurador de lugares comuns? Se antes a mídia espetacularizava o "real", agora todos nós temos a oportunidade de também o fazê-lo de forma mais ampla e massificada. Até as inteligências artificiais já o fazem. Como os spams surrealistas expostos por Dery. Saladas de palavras aleatórias que desconstroem nossa realidade e a remontam de forma tecnologicamente poética, aludindo ao dadaísmo escrachado dos ready mades de Duchamp. Tudo isso para driblar os mecanismos de filtragem de spams, os spambots, presentes em nossas caixas de e-mail contemporâneas. Para Dery enxergamos elos e sentidos onde queremos.

E a ficcionabilização ou potencialização da pornografia que flui através da virtualização do sexo e de suas subculturas? Dery também se lançou sobre isso. Uma pornografia online, "artificialmente delirante" e acessível para todos. O autor discorreu sobre essa pornografia pós-humana e pós-moderna em comparação a hiper-realidade revolucionária construída em The Matrix. O que o levou a questionar: seria o sexo virtualizado, transcrito em metáforas visuais hiper-realistas, uma "paródia do sexo real" ou seria a potencialização do ato em si? Através dessa "pornografia ciborguiana" o ato sexual é desconstruído por tecnologias e imaginários que estimulam a libido e a satisfação do desejo sexual de forma mais livre e criativa que por sua vez influem no futuro e no imaginário da pornografia e no imaginário social num sentido mais amplo.

Dery falou também do nosso apetite voraz pela informação, que é servida a moda fast food (metáfora nossa). Sincronizamos nossas práticas cotidianas aos hábitos caóticos e as correrias de um mundo interligado, motivado pelos novos modelos e dinâmicas econômicos. Quanto mais informação mais poder. E nesse contexto, não acompanhar o ritmo pode denotar ignorância cultural ou "descompasso existencial". Estreitamos nosso tempo tentando dar atenção a tudo, mesmo que superficialmente. As obras densas, os pesados livros carregados de simbolismo, fetiche e status social ficaram de lado, objetificados enquanto souvenires ornamentais. E isso parece indicar uma certa libertação da matéria. A informação cada vez mais onipotente e onipresente nos inunda e nos encerra. Buscamos dotar de sentido nossas existências. Dery alertou que esse sentido pode estar nas coisas mais simples as quais não temos tempo para ver, ler e compreender. O sentido buscado pode estar na pilha de jornais crescente ao nosso lado, nas entrelinhas do nosso cotidiano digitalizado ou até mesmo na frivolidade de nossas relações sociais.

Nunca tivemos tantos meios e artifícios facilitadores, tantos espetáculos, tantas oportunidades para o lazer e para o prazer, para estimular nosso imaginário e propiciar nossa plenitude existencial e o nosso gozo (literalmente também). E mesmo assim nunca satisfazemos completamente nossos organismos e mentes ávidos por novidade. Antes pela novidade objetificada, agora pela novidade virtualizada, sentida e experenciada. Como bem colocou Dery a vida vivida na web é paradoxal. Estamos em constante "inércia terminal". Viajamos a bilhões de bits por hora em paisagens espetaculares cravados em nossas confortáveis cadeiras.

Falando em gozar, aliás, passando pelas obsessões Freudianas até as peripécias Ballardianas, e chegando na virtualização e ficcionabilização do imaginário e dos ímpetos sexuais, Dery demonstrou que a sexualidade tem se mostrado como um dos aspectos fundamentais da cultura, ideologias e imaginários humanos. A sexualidade gera práticas, subculturas que são boas para se analisar, para se pensar e se compreender um pouco mais acerca das relações sociais. Aliás, o autor nos mostrou que tudo é bom para se pensar. Como suscitou Dery: "Seria a tendência intelectual de Sempre Conectar, e de igualar isso à inteligência, apenas um eco cognitivo do fato neurológico de que nossos pensamentos viajam em redes dentríticas?" (p.342).

A cultura é plural, as práticas sociais são muitas. Podemos pensar os problemas da sociedade contemporânea a partir de qualquer prisma. E Dery tratou a contemporaneidade e a cultura atual sem preconceitos, na plenitude de suas ambivalências e contradições.

Para ir além:

DERY, Mark. Não devo pensar em coisas ruins: ensaios sobre o império americano, cultura digital, pornografia pós-humana e o simbolismo sexual do dedão da Madona. Porto Alegre: Sulina, 2010.

Guilherme Mendes Pereira
Pelotas, 3/4/2013

 

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