|
Terça-feira, 16/7/2013 Elke Coelho e a estética glacial-conceitual Jardel Dias Cavalcanti A Divisão de Artes Plásticas da Casa de Cultura da UEL, sob a direção do artista Danillo Villa, tem representado para a cidade de Londrina um acontecimento exemplar, tornando-se o único espaço realmente vivo na cidade onde a arte contemporânea tem sido exibida, através da apresentação de uma grande variedade de artistas e de suas propostas, criando uma conjunção extremamente rica entre exposição, debates (com os artistas, críticos e público) e uso educativo do espaço pela comunidade. Além disso, mantendo um edital anual aberto a artistas de todo o país. (visitem o blog) É dentro dessa política que foi inaugurada este mês a instigante exposição "Quando os objetos se tornam abismos", da artista plástica Elke Coelho. São dois andares da Casa de Cultura ocupados por uma grande variedade de objetos criados pela artista, reunidos a partir de uma proposta conceitual com forte teor introspectivo. A arte conceitual abriu um espaço, a partir dos anos 60 e 70, para que artistas pudessem criar obras de forma extremamente livre, a partir de uma infinidade de objetos apropriados do universo industrial ou natural, e no qual a ideia fosse mais importante que a fatura do próprio objeto. A (re)construção de significados a partir do encontro de objetos recortados e agrupados de forma inusitada advinha das experiências das vanguardas, principalmente dadaísta e surrealista, que tomaram, a partir da segunda metade do século XX, um caminho bastante profícuo em proposições artísticas. Artistas como Kosuth, Manzoni, Morris, Sol Lewitt, Buren, Cildo Meireles, Eva Hesse, Gober, dentre tantos outros, abriram espaço para experiências artísticas onde forma, ideologia, identidades, gêneros, política, subjetividades, história apareciam discutidas nesse entrecruzar de objetos redefinidos a partir do interesse particular de cada artista. No caso específico da artista Elke Coelho, essa tendência conceitual se dá pela apropriação de objetos industriais como cotonetes, giletes, vidros, alfinetes, palitos de fósforo, palitos de dente, algodão, caixas de acrílico, espuma, rolhas, pregos, canecas, esferas peroladas, etc, e pela apropriação de objetos naturais como plantas e frutas (cactos, flor sempre-viva e maçãs). Ao se percorrer a exposição da artista, a primeira coisa que salta aos olhos é o predomínio da cor branca dos objetos por ela criados (ou apropriados). Na obra "Deserto", por exemplo, Elke organiza uma espécie de campo desértico, através de um fileira de "telas", construídas por um ajuntamento de centenas de cotonetes, sustentados por estruturas acrílicas. O branco que se estende pela ampla parede que o recebe indica e reforça, sem sombra de dúvida, a imagem do deserto ou de um amplo vazio. Apesar da ideia de deserto não ser atraente, pois significa uma possibilidade de ausência de vida, de solidão, os cotonetes, em sua fatura algodoada, nos transmitem uma sensação de aconchego, de conforto dentro desse deserto. Embora o efeito imediato do branco na obra seja sensorial, vale atentar para o seu sentido simbólico. Segundo Kandinski, em seu livro Do espiritual na arte, "o branco, considerado muitas vezes como uma não-cor, é como o símbolo de um universo onde todas as cores, enquanto propriedades de substâncias materiais, se desvanecem. Este universo é de tal forma elevado, que dele não chega qualquer som. Apenas um grande silêncio se estende até ao infinito, como uma fria muralha, impenetrável e indestrutível. Na nossa alma, o branco atua como o silêncio absoluto. Interiormente, ressoa como ausência de som, que na música equivale ao silêncio, esse silêncio que apenas interrompe o desenvolvimento de uma frase, sem constituir remate definitivo. Este silêncio não está morto, antes transborda de possibilidades vivas. O branco soa como um silêncio que de súbito pudesse ser entendido. É um quase "nada" pleno de alegria juvenil, ou melhor, um nada anterior ao nascimento, a qualquer começo. Talvez a Terra, na sua época glacial, soasse assim, branca e fria." Este branco tem consequências simbólicas fortes em todas as obras de Elke Coelho. Outra obra em que é visível essa ideia de "fria muralha impenetrável" (ou que não se deixa penetrar), como o branco sugere, é "Coágulos", na qual uma grande quantidade de pequenas caixas de acrílico contendo bolinhas brancas são coladas sobre a parede branca, que funciona como uma duplicação da sua opacidade. O coágulo, que deveria ser vermelho, aqui é exposto numa brancura irremediável. Segundo Kandinski, "o calor da cor tende a aproximar o espectador, enquanto o frio o afasta". Essa sobreposição de brancos e transparências criado pela artista, nesse sentido, impede que o espectador se detenha diante da obra, sendo chamado por qualquer referência calorosa; ao contrário, causa-lhe a sensação de ausência de vida. Na parede branca quase se anula o valor que sobre ela é adicionado pela obra. No caso da obra "Proposta (situação outra)", duas maçãs aparecem lado a lado, uma delas com esferas peroladas e a outra totalmente espetada por alfinetes. A maçã, que deveria nos aproximar por sua cor vermelha (que segundo Kandinski evoca a força, a energia, a decisão, a alegria e o triunfo e, ao contrário do branco, soa como uma fanfarra em que predomina o som forte, obstinado e importuno do clarim), se torna, depois da inserção de um grande agrupamento de alfinetes espetados na fruta, semelhante ao cacto, esta planta simpática que, apesar de formosa, impede qualquer aproximação. A sensação que temos diante das duas maçãs é de que a primeira nos chama ao contato, já que as esferas peroladas a torna atraente, mas a segunda seria a resposta à aproximação: o seu impedimento espinhoso. Simbolicamente também sabemos que a maçã é o sedutor fruto do pecado ao qual não se resiste e pelo qual se pode perder o paraíso. Então, essa particularidade da forma com que a artista apresenta as duas frutas pode significar o tensionamento entre o desejo e sua impossibilidade (ou proibição) de realização. É interessante como o procedimento se repete em "Sobre as aparências e os desejos", quando duas canecas são colocadas lado a lado, uma branca e outra vermelha, ambas com uma bola branca por dentro, mas justamente na caneca vermelha, que nos atrairia por sua cor, a bola encontra-se espetada por uma espécie de prego que sugere um impedimento à nossa aproximação. Essa indisposição entre materiais que se contrapõem também pode ser vista na obra "Casulo II", onde uma sucessão de giletes (lâminas de barbear), colocadas dentro de caixas como "telas", são acondicionadas junto a pequenos pedaços de algodão. À delicadeza do algodão, contrapõe-se o perigo do corte pela lâmina de aço. O que se percebe no conjunto das obras desta exposição é uma dinâmica do perigo (alfinetes, giletes, pregos, fósforos) aliada à cor fria, distante, opaca do branco. Quando não, como, por exemplo, na série com palitos de fósforo, é a sensação de perigo, ou a criação de áreas de perigo, que impedem também qualquer tentativa de aproximação. Coexistências como áreas de risco, como diz o título do trabalho e diz tudo. A obra "Castelos" também nos faz pensar nessa barreira estabelecida entre espectador e obra. Os vasos brancos recebem de forma serial seus cactos, estes denominados pela artista com o nome de "castelos", impossíveis de se penetrar dada a possibilidade de ferimento que os espinhos insinuam a quem se aproximar. O mesmo procedimento das maçãs, ao criar a barreira de alfinetes que nos afasta do objeto. A artista opta por materiais delicados, singelos, mas cortantes e/ou perigosos. A sua organização metódica desses materiais denota uma paciência de monge zen budista, um autocontrole férreo, uma disposição minimalista pela repetição. A exposição é, aparentemente, à primeira vista, leve, serena, elaborada com cuidado e delicadeza, mas sob a menor aproximação começa-se a perceber o engano, através das armadilhas que vão se estabelecendo para o espectador a cada obra que se apresenta. Se se chegar muito perto, os pequenos objetos se tornam abismos. Na foto acima, a artista conversa com o público sobre seu processo de criação. Jardel Dias Cavalcanti |
|
|