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Quarta-feira, 31/7/2013
Edward Snowden: a privacidade na era cibernética
Humberto Pereira da Silva

1.
O ano de 2013 está sendo um dos mais agitados dos anos recentes. Grandes manifestações populares em diversos cantos do mundo, inclusive o Brasil, golpe militar no Egito, intervenção francesa na guerra do Mali, guerra civil na Síria, burburinho em torno da blogueira Yoani Sánchez, cubana anticastrista que ganhou notoriedade internacional por meio das redes sociais, são eventos que marcam o ano em escala global.

Exclusivos do campo político, com reflexos no comportamento social e em novas manifestações culturais, são suficientes para se conjecturar a respeito de um movimento de inflexão no modo como interagimos e nos situamos no mundo em que vivemos. Nesse sentido, o episódio mais insólito e inesperado deve-se às declarações de Edward Snowden, ex-analista da Agência de Segurança Nacional (NSA), que revelou aos jornais The Guardian e Washington Post como o governo americano monitora comunicações e tráfico de informações entre suspeitos e aliados.

A NSA, criada em 1952, nos primeiros anos da Guerra Fria, portanto, é responsável pela intercepção e análise de informações suspeitas. Trata-se, supostamente, do maior núcleo de conhecimento em criptografia no mundo, pois seu modus operandi é protegido por segredo de Estado. Entre as poucas informações, a de que atua em cooperação com agências equivalentes no Reino Unido, Austrália e Nova Zelândia, e que opera com cerca de 54 mil funcionários de empresas privadas subcontratadas.

Até aqui nenhuma novidade, senão que, a partir das revelações de Snowden, o monitoramento das comunicações é realizado pelo material sigiloso do programa de vigilância PRISM. O programa seria capaz de fornecer à NSA diversos tipos de mídia sobre os alvos escolhidos, como correio eletrônico, conversas por áudio e por vídeo, fotos, transferências de arquivos, notificações de login etc. Segundo Snowden, nove das grandes corporações de internet participam do programa: Microsoft, Google, Facebook, Yahoo!, Apple, YouTube, AOL, Paltak e Skype.

Suas revelações caíram como bomba; chocaram autoridades governamentais supostamente monitoradas, que, no discurso, exigiram explicações do governo americano. De um modo cujos desdobramentos são imprevisíveis, é o maior escândalo do governo Barack Obama. No momento, Snowden encontra-se foragido, na área de trânsito do Aeroporto Internacional de Scheremetyevo, em Moscou. Enquanto tenta obter asilo político, o governo americano tenta extraditá-lo, a fim de que seja julgado por espionagem.

2.
Considerado o ponto de vista estritamente pessoal, o caso Snowden alimenta as mais fantasiosas especulações. Por isso, tratar de suas motivações, ou fazer julgamento moral de seu gesto - se é traidor ou herói -, apenas encobre alguns pontos que dão à sua saga um ar de incredulidade, de ficção. Vale dizer: crê-se como se crer num James Bond que escapa das situações mais improváveis.

Ora, Snowden prestava serviço num órgão ultrassecreto do governo americano no Havaí. Ele trabalhava na Booz Allen Hamilton, uma empresa de consultoria especializada em tecnologia de informação. De lá, ele foi para Hong Kong, onde fez suas comprometedoras revelações ao jornalista britânico Glenn Greewald, do The Guardian. Em seguida, ele conseguiu sair de Hong Kong e se refugiar em Moscou. Feitas as contas, um bom roteiro para filme de 007.

Para qualquer pessoa com o mínimo de bom senso, não há como não estranhar que um funcionário, num universo de possíveis 54 mil, de modo isolado tenha carregado informações com poder de uma bomba atômica. Como lhe foi possível, de uma hora para outra, sair do Havaí "tranquilamente", sem que ninguém notasse, com um arsenal de informações explosivo? Como imaginar que um sistema de segurança "eficientíssimo" não controla as andanças de um funcionário, em certos aspectos, absolutamente normal?

Se ele agiu sozinho, basta fazer um simples cálculo de probabilidade e notar quantos, potencialmente, também puderam fazê-lo, em função dos mais variados interesses, e passaram informações sigilosas, com a diferença de não terem suas confidências reveladas na grande imprensa. A questão é simples: o programa de vigilância PRISM pode ser operado fora da NSA? Caso isso seja possível, como Snowden, ele está fora de controle (para ficarmos na ficção, lembremos de HALL em 2001, uma odisseia no espaço). Mas, claro, se ele não agiu sozinho, então ele não passa de bode expiatório. Nas duas situações, os descrentes em teorias conspiratórias nesse momento estão pouco à vontade.

Entre as estranhezas desse insólito episódio, ainda, o jogo de cena de autoridades governamentais e imprensa. Uma agência de segurança com atuação há mais de sessenta anos não era ignorada por quem está no jogo das esferas de poder, sob o risco de ingenuidade. A surpresa com o que foi publicado é similar a de quem se chocaria ao saber que 9/10 de um iceberg fica debaixo dīágua. Desconhecer a forma, ou a silhueta do que está submerso, é um dado óbvio; mas não se espantar com a notícia de que um iceberg não se resume ao que é visto na superfície. Nesse espanto, algo como o dos súditos que fingiam não ver a nudez do rei, na fábula de Hans Christian Andersen.

3.
Estranhezas a parte, trata-se de um episódio em que, quanto mais se mexe, menos se sabe e muito se especula. De qualquer forma, é cada vez mais evidente que a realidade cibernética adentra em nosso cotidiano e provoca mudança no sentido comumente dado à privacidade. Num processo irreversível, como o foi o do telefone, o uso cada vez mais frequente de redes sociais coloca em pauta questões impensadas anos atrás. A mais notória diz respeito ao estreitamento vertiginoso entre privacidade e publicização de comportamento.

A existência e consequente pirataria de programas de vigilância como o PRISM coloca à disposição de qualquer um informações que podem ser usadas para os mais abjetos interesses. O que significa dizer não só que cada indivíduo isolado ficaria exposto a formas de controle de que não tem como escapar, como também se vê forçado a reorganizar suas movimentações, contatos ou simples registro de agenda em consonância com uma nova realidade.

Esse admirável mundo novo cibernético, com as revelações de Snowden, aponta para o seguinte cenário. Nos próximos anos, independente da ingerência do Estado, todos potencialmente estaremos vigiados. Vale aqui lembrar a famosa alegoria do Anel de Gyges, na República, de Platão.

Um pastor chamado Gyges encontra por acaso um cadáver que usava um anel. Quando Gyges coloca o anel no próprio dedo, descobre que este o torna invisível, conforme sua posição no dedo é alterada. Sem ninguém para monitorar seu comportamento e, ao mesmo tempo, podendo ver tudo, Gyges passa a praticar toda a sorte de maldade: seduz a rainha, mata o rei e toma o poder. Essa alegoria levanta a seguinte indagação moral: algum homem resistiria à tentação do mal se soubesse que suas ações são invisíveis aos olhos dos outros?

Aquele que vê tudo e é invisível aos olhos de todos está isento de julgamento moral. A moralidade, bem entendido, supõe a visibilidade das ações, para que sejam julgadas certas ou erradas, justas ou injustas. Uma instância que controla, mas não é vista, tem poder de ação ilimitado. Em outras palavras: a alegoria platônica ganha forma no mundo cibernético. Este parece instaurar uma nova moralidade, em que o sentido de privacidade, com as redes sociais e similares, está sendo pulverizado.

Humberto Pereira da Silva
São Paulo, 31/7/2013

 

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