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Quinta-feira, 15/8/2013 Primórdios da exploração do tabuleiro Carla Ceres Um dia, despertamos sobre um imenso tabuleiro de jogo. Percebemos que éramos muitos e estávamos perdidos sem saber de onde vínhamos ou para onde íamos. Nem todos despertaram ao mesmo tempo. Na verdade, muitos dormem até hoje, enquanto se encarregam de sobreviver como os outros animais. A lida não lhes dá tempo para indagar sobre essências e transcendências. Várias palavras lhes faltam e, na ausência delas, a capacidade de raciocínio abstrato mal se desenvolveu. Sim, eles andam, falam, procriam, trabalham, sofrem e reagem sempre do mesmo jeito. Pensam sem refletir e prosseguem sonâmbulos. A natureza nos programou para despertar e refletir sobre o mundo, logo que o jogo da vida nos desse uma folga. Por isso, talvez os primeiros a tentar entender as regras do tabuleiro tenham sido os humanos fisicamente mais fracos ou enfermiços, que ficavam à margem da luta cotidiana. Credito a eles as pequenas invenções que facilitam o dia a dia. Da mesma forma, uma certa hipersensibilidade emocional parece necessária aos artistas, cuja missão é alertar-nos sobre as complexidades do jogo e as dimensões ocultas do tabuleiro. Somos primatas, vivemos em bando. As sábias palavras de um iluminado sozinho no meio da floresta não aprimoram em nada nossa sociedade. Até os sonâmbulos são mais úteis do que os egoístas despertos, que buscam a salvação individual. Por milênios, fomos todos sonâmbulos e, mesmo nesse estado, aprendemos muito. Descobrimos que animais de determinadas cores costumam ter peçonha; que certas plantas e suas semelhantes têm veneno; que quem nos fita com o cenho franzido está prestes a atacar. Esse tipo de conhecimento precedeu as palavras e agora faz parte de nossa programação básica, vem de fábrica. Bebês nascem com sistema de reconhecimento facial pronto para entrar em ação quando receberem estímulos suficientes. Sorria para eles, de preferência um sorriso bem exagerado, e eles sorrirão de volta. É automático e funciona nos dois sentidos. Um ser humano que não sorri de volta para um bebê tem algum problema. Olhar zangado e testa franzida produzem o efeito contrário, assustam bebês e geram apreensão em humanos adultos e cães. Sim, os cães, nossos companheiros de longa data, são mestres no reconhecimento de nossas expressões faciais. Aprenderam com a convivência. Geopoeticamente falando, o primeiro conhecimento sobre nossa localização pode ter sido: Aqui é um lugar que muda à medida que se anda. Antes havia apenas a sensação de que ali é onde mora o outro e lá longe fica o desconhecido. Por temor ao desconhecido, precisamos conquistar o lá longe, transformá-lo em algo familiar. Assim começamos a mapear o tabuleiro. Procuramos suas bordas, descobrimos que era redondo. Continentes deixaram de ser lá longe. A Lua agora é logo ali. O espaço-tempo pode ser curvo e ir além das dimensões conhecidas. Com tanto desconhecido à solta, fica difícil dormir. A cada dia, mais pessoas se dedicam a desbravar algum campo de conhecimento ou a exercer atividades beneficentes. O ideal de seres humanos vivendo em harmonia, sem fome ou sofrimento se expandiu e, para alguns de nós, deve incluir os animais. Se esse pensamento vingar, as formas de vida alienígena que encontrarmos terão muito a agradecer porque, depois que nossos cientistas as dissecarem, poderão ficar em paz. Isso se não mudarmos de ideia de repente e resolvermos demonizá-las. Acontece que duas crenças perigosas nos acompanham desde a infância. A primeira é que, se fizermos tudo certo, a vida vai ser tranquila e o mundo, aconchegante como o colinho da mamãe. A segunda é que tudo de errado é nossa culpa ou, pior, culpa daquelas pessoas malignas que discordam de nós. Não conseguimos aceitar que coisas ruins acontecem aleatoriamente a qualquer um. Quando eu tinha sete anos, um tio me ensinou a jogar xadrez. No mesmo dia, ensinei meu irmão mais novo e jogamos nossa primeira partida juntos. Aos quatro anos de idade, ele queria que o jogo se estendesse para fora do tabuleiro. Mais exatamente, queria que existisse um jogo paralelo dentro da caixa de papelão onde deixávamos as peças "mortas" na partida. Resolvi concordar porque, caso contrário, ele começava a roubar para manter suas peças "vivas". É tentador e reconfortante acreditar que o jogo continua após a morte. Se o tabuleiro tem tantas dimensões, por que não mais essa? Que mal faz acreditar em uma vida melhor onde a justiça prevaleça? Na minha opinião, mal nenhum desde que isso não se transforme em uma canção de ninar e nos leve a passar pela vida como sonâmbulos. Nota do Editor Carla Ceres mantém o blog Algo além dos Livros. http://carlaceres.blogspot.com/ Carla Ceres |
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