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Quarta-feira, 28/8/2013
O holismo conformado
David Butter

No Brasil, refinamos a complexidade como desculpa. Se precisamos de uma escusa para defender o status quo, por mais odioso, encontramos no somatório das dificuldades uma fórmula dourada para não mexer em nada. "Você está simplificando demais", "para resolver x, é preciso atacar y, z, a1, b1, sem esquecer do intervalo de denominadores e dos multiplicadores ainda desconhecidos": na ânsia de preservar nosso lote, somos doutos até a medula. É o holismo conformado.

Entre nós, os fatos consumados ganham estatuto de sabedoria milenar em dois minutos. Fruto da força ou do conluio, revestidos de conciliação quando se baseiam em violência, os fatos consumados recebem aqui a pátina dos séculos. Envernizada duma antiguidade instantânea, cada distribuição de poder no Brasil forma uma escola de defensores, de tanga, de regata ou de toga, a dizer "olhe o cenário geral", "não é tão fácil".

Não se trata de um resgate do meio-burro, o colono mais próspero da nossa inteligência, aquele personagem capaz de resolver grandes dilemas em uma tirada. Antes, é a descrição de um recurso que até o meio-burro, ele mesmo um inimigo da complexidade, emprega: nada mais simples, nada mais corriqueiro do que levantar a barra do possível para garantir o mesmo. No país dos bacharéis (e diplomatas, e engenheiros, e pinduretas), não é preciso ser sutil para acionar a sutileza: basta ser esperto, ter a medida do próprio calo.

O holismo conformado brilha em discussões sobre privilégios ou licenças, ainda mais quando entre os atores figuram os integrantes de corporações estabelecidas. Exemplo corrente: o debate sobre a falta de médicos nos rincões. "Contratemos profissionais estrangeiros" → "Ah, mas a questão envolve uma série de fatores". "Façamos os estudantes atuarem no serviço público" → "Além de escravidão, é um remendo para um problema muito maior", e assim segue até a exaustão da conversa numa réplica que inclua "Só brasileiros de jaleco podem palpitar".

No manual de arquitetura do holismo conformado, é impossível consertar uma telha sem mexer nas fundações. Se a persistência do telhado banguela for "questão de honra", não faltará laudo para recomendar um seminário multidisciplinar sobre a arquitetura e os anseios do homem no mundo contemporâneo.

O holismo conformado exagera as partes, enumera-as sempre com um "etc.", insinua um emaranhado intratável, só para conservar o todo. É um hábito argumentativo capaz de embaralhar progressistas, conservadores e peemedebistas existenciais. É um filhote de bode com hidra, bem no meio da sala. E o bode-hidra fede, pede carinho em suas infinitas cabeças, mas nunca esconde os dentes.

(Há futuro para a veterinária fantástica.)

Nota do Editor:
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no tumblr de David Butter.

David Butter
São Paulo, 28/8/2013

 

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