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Quinta-feira, 31/10/2013 Tempo de nebulosas Elisa Andrade Buzzo ilustra: Renato Lima Noite parada e morna, logo virá o vento que precede a finura da chuva; não há frio nem calor, o tempo está dentro do tempo, como se nada pudesse mais vir além do que ele propõe. Imersos estamos no presente, ele é audível no ruído do caminhão de lixo, no assento mole do ônibus, quando se instaura um momento específico em que se roda com facilidade, como que se abre o caminho ladeado pelas janelas escurecidas e levemente aclaradas. Estaco no cemitério e diante da noite negra percebo que estou por mim mesma. Caminho no longo quarteirão pouco acessado da avenida, o muro branco circunda meus passos, pouco a pouco há apenas esse andar, uma transição ao motivo desta saída noturna; um gradeado antigo recorta a monotonia do branco, vê-se através dele a silhueta congelada das lápides. Ando como quem não procura, mas acha, e os encontro, antes eles vêm a mim apressadamente, com feições baixas e olhos talvez muito abertos. E, então, temos, juntos, a visão surreal do poeta pleno de flores, as mãos enlaçando um terço, que não irá fugir, o poeta também não irá a lugar algum, e nós, para onde vamos depois?, um tule branco cobrindo o corpo, mostrando que aqui alguma divisão deve ser feita, mesmo que por vazado e fino pano. Estamos aqui e lá, uns talvez mais aqui, outros talvez mais lá, e é nesse entremeios que se aloja a fundura do pano, e é nesse campo branco que se olha com olhos de susto. As coroas de flores empesteiam a harmonia das formas de pétalas cortadas, dos caules decepados. Há, sim, um incômodo no ar, algum tipo distante de inseticida, mas há um elo que se fecha, uma confluência zonza de gente, rostos triste e vazios, como que caídos na beira da incompreensão. Então é isto, a vida? A vida é isto, a morte, um corredor com saletas em que jazem corpos e flores para a observação calada e atônita dos homens. Somos abraçados por desconhecidos, afinal também somos desconhecidos para os familiares, no entanto há algo que nos afeta a todos, há alguém, enfim, que nos torna todos reconhecíveis. O que lá está é do plano do volúvel e do pensamento, nebuloso, embora suas esquinas sejam sólidas. Sim, logo ao lado, as esquinas tumulares são rígidas, apenas perceptíveis na penumbra, não é na escuridão total que estão pois a grande avenida lança luzes demais em seu campo. Agora, tentamos fazer o caminho de volta. Saímos, alcançamos a calçada da avenida, aqui, sob este novo ponto de vista, parece, há muita coisa palpável, luz, metal. O prédio antigo da faculdade de medicina está com luzes cor-de-rosa. Os carros passam sem saber de nada que ocorre ao seu redor, e a vida nos chama ao dever da ação. Caminhamos? Antes somos conduzidos por esta nova brancura que nos invade, como se a nós tivesse sido dado o direito à vida e dela tivéssemos o dever de fazer algo na altura do inaudível. Elisa Andrade Buzzo |
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