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Segunda-feira, 6/1/2014
Kardec, A Biografia, de Marcel Souto Maior
Ricardo de Mattos

"Lamento-o, caro senhor, porém não tenho o dom de fazer milagres. Julgais que uma ou duas sessões bastariam para adquirirdes convicção? (...) Eu precisei de um ano de trabalho para ficar convencido" (Allan Kardec).

Neste ano em que as biografias foram objeto de curiosa polêmica, chega às livrarias um livro tão inesperado quão gratificante. Trata-se da biografia de Allan Kardec, escrita por Marcel Souto Maior, quem já escreveu outrora a de Francisco Cândido Xavier. "Coisa tranquila escrever a respeito de quem já desencarnou sem herdeiros, em tempo e lugar distantes", podereis observar diante da última celeuma. Pelo contrário: meia dúzia de mentes brilhantes podem frustrar um lançamento que nos remete às batalhas dos primeiros anos do Espiritismo e relembram a humanidade daquele que foi seu primeiro comandante-em-chefe.

O texto é ligeiro e enxuto. Quem quiser maior detalhamento que recorra à obra em três volumes escritos por Zeus Wantuil e Francisco Thiesen, recentemente reeditada em dois volumes. O que nos faz adiar a leitura do trabalho de Wantuil e Thiesen é o capítulo em que eles preocupam-se em investigar si Kardec foi ou não médico, si teve ou não formação em Medicina, no que farejamos algo tendencioso e irrelevante para o conhecimento a respeito do Codificador. Sua importância para os seguidores do Espiritismo advém do fato de ele ter sido médico ou do fato de ele ter organizado as bases da Doutrina?

Duas partes são nítidas na biografia escrita por Souto Maior. A primeira, quando escreve sobre o professor Hippolyte Léon Denizard Rivail, educador cético e autor de diversas obras para uso escolar ou universitário. Talvez devido à ausência de maiores informações a respeito de sua vida escolar e familiar, Souto Maior transmite o que já é sabido, intercalando informações sobre o a sociedade francesa na primeira metade do século XIX, especialmente quando esta sociedade diverte-se com as brincadeiras em torno das mesas girantes. Na segunda parte o biógrafo escreve a respeito de Allan Kardec, pseudônimo adotado pelo professor Rivail quando do lançamento da primeira versão do Livro dos Espíritos. Nesta parte, segue a linha cronológica definida pela sequência de publicação das obras da chamada Codificação e pelas informações pescadas na Revista Espírita.

A Revista Espírita, publicação cujo subtítulo é Jornal de Estudos Psicológicos, foi editada por Kardec entre 1858 e 1869, ano de seu desencarne. Nela é possível encontrar o Kardec combativo, enfrentando cada uma das acusações que ele e a Doutrina recebiam rotineiramente. Ao consultar a bibliografia utilizada por Souto Maior percebemos que, embora ele mencione a quase totalidade das obras de Kardec, e embora ele demonstre ter tido contado com um livro de Eduardo Carvalho Monteiro, ele esqueceu-se ou ignorou o último e desafiador opúsculo kardecista. Trata-se do Catálogo Racional - Obras para se fundar uma biblioteca espírita, descoberto e traduzido por Carvalho Monteiro, o qual já mencionamos alhures.

Não identificamos na biografia escrita por Souto Maior pesquisa que ultrapasse a bibliográfica. Si ele menciona visita a algum endereço habitado por Kardec, ou outro local por onde tenha passado, não percebemos. Caso tenha entrevistado pessoas, ou entrado em contato com os atuais mantenedores do Espiritismo na França, perdemos. O livro não traz foto ou fac-símiles de documentos autógrafos, tão a gosto de biografias que já tivemos oportunidade de compulsar ou ler. Por outro lado, a biografia é digna de elogios sinceros. Souto Maior lidou com uma grande quantidade de textos e extraiu um retrato dinâmico e suficiente de Kardec, retrato necessário para os dias de hoje, quando o Espiritismo periga transformar-se num catolicismo reencarnacionista. Não criticaremos a Igreja que primeiramente nos acolheu nesta encarnação e da qual fomos defensor em outras. As propostas são diferentes e o mero deter-se em distingui-las pode levar a divagações deslocadas.

Capítulo sim, capítulo não, praticamente, Souto Maior discorre a respeito da pior azucrinação de Kardec, que foi a financeira. Limitar a discussão ao campo das ideias e à veracidade ou não dos fenômenos por ele verificados, era uma coisa: havia adeptos e opositores como em qualquer questão. Todo o ano, porém, Kardec precisava comprovar sua idoneidade na administração da Sociedade Espírita de Paris, e mesmo a honestidade de sua vida pessoal. A obrigação de prestar contas da gestão para fins administrativos difere da defesa contínua. Não é difícil imaginar que, a cada acusação lançada, seus próprios correligionários punham-se em alerta. As acusações vinham do clero, da imprensa, da academia e da sociedade, em obra conjunta ou isolada. E sabemos o quanto é desgastante interromper o trabalho que se ama e que nos monopoliza a atenção, para retornar a pontos já detalhados quatro, cinco, seis vezes. Com o tempo, aprende-se a diferenciar a preocupação legítima da mera importunação.

Em julho de 1869 foi lançado no Brasil o periódico bimestral Ecos do Além Túmulo. A publicação baiana recebeu menção expressa nas páginas da Revista Espírita, a cargo de um comitê após o desencarne de Kardec. Admiraram-se os componentes deste comitê que o Espiritismo tenha encontrado espaço num país considerado religiosamente fechado. Isto garantiu à Doutrina sua guarda após a decadência no território de origem, mas fez predominar o aspecto religioso. Gostaríamos de realçar três pontos.


Marcel Souto Maior
(promoview.com.br)

Primeiro, que Kardec pleiteou a configuração do Espiritismo como doutrina filosófica de base científica e consequências morais. Ou seja, da observação e questionamento dos fenômenos poder-se-ia chegar a ideias que repercutiriam no campo moral. A existência humana poderia adequar-se finalmente à Natureza, considerada esta em seu mais amplo aspecto, que englobaria o visível e o invisível. Aliás, que englobaria o crível e o que ainda se encontra na condição de incrível, pois com seres e elementos invisíveis nós já lidamos rotineiramente: vírus, bactérias, átomos, partículas subatômicas, moléculas, raios de luz, ondas sonoras. Convidando o homem a desvendar seu papel não mais no mundo, mas no próprio Universo, o Espiritismo pretende levá-lo a conduzir-se sem submissões a dogmas e instituições. Admitamos que ser "senhor de si" exige uma dose de coragem que muitos não estão dispostos a desenvolver.

Segundo, que toda tentativa de sistematizar algum conhecimento que não reserve espaço para o que ainda está por descobrir-se resulta num circuito fechado que perecerá com o passar do tempo. Ou num jogo, cujo conhecimento das regras poderá ser utilizado a favor do jogador mais atento e nem sempre melhor intencionado. Todo pensamento, teísta ou não, que desconsidere a capacidade de crescimento do espírito humano, crescimento para além daquilo que este mesmo pensamento prega, revelar-se-á insuficiente e sufocador. Estamos convictos da existência de Deus e da vida espiritual. Não espere o leitor de nós, todavia, definições ou receitas para bem viver: apenas desconfiamos que isto envolva livros, chocolates e cachorras indecentes que escondem a chave do carro.

Terceiro, e esta é uma reflexão pessoal desenvolvida ultimamente, religião não é um conjunto de regras, práticas, crença e obediência a pessoas ainda mais carentes de sentido do que nós mesmos. Não haveria uma religião católica, evangélica, espírita, hinduísta ou islâmica. Instituições e partidos, sim. Religião, conforme o rastro que seguimos após encontrarmos a semente no próprio Espiritismo, seria justamente o fenômeno de reencontro da alma com Deus, da criatura com o Criador. Seria uma experiência personalíssima, imprevisível e não sujeita a regras. Há um capítulo do Sidarta, de Hermann Hesse, em que o personagem encontra o próprio Buda e observa que, si seguisse suas orientações, repetiria apenas o percurso dele, no que foi compreendido.

Podemos citar alguns dos princípios espíritas. Tudo foi criado por Deus. O Universo é composto por inteligência e matéria. O homem, parcela desta criação, também é composto de inteligência e matéria, de espírito e corpo. O espírito sobrevive à matéria e a ela retorna através da reencarnação para completar sua evolução. É possível a comunicação entre encarnados e desencarnados. A fé deve ser raciocinada. Muitos são os mundos habitados. Nota-se que o dualismo cartesiano é radicalizado e que os demais não são estranhos à humanidade, mormente à parcela oriental, o que já rendeu ao espiritismo a alcunha de "faquirismo ocidental". No Brasil, a conversão do aspecto moral em religioso, se por um lado jogou sombra sobre o aspecto científico e o filosófico, tornando a doutrina presa de mentes instáveis, por outro lado representou um ganho ao consolidar a proeminência da figura de Jesus Cristo. Não o Cristo místico, mas o histórico. No mundo, o declínio do Espiritismo como ciência é um dos frutos da Segunda Guerra Mundial, que mergulhou significativa parcela da humanidade num quadro de desconfiança e mesmo de rejeição. Sobreviveu certa atração pelo que se denomina paranormalidade, mas isto sequer representa o que Kardec pretendia. A fenomenologia é maltratada, mas pesquisas sérias são realizadas principalmente no campo da saúde, percebendo-se que as mazelas humanas não encontram sua causa apenas no físico e no psíquico.

Em duas ou três oportunidades, Kardec rejeitou o rótulo de religião para a doutrina cujos princípios lutava para assentar. Como bem lembra Souto Maior, no texto kardecista O Espiritismo é uma religião?, há rejeição frontal a esta vinculação, repugnando ao Codificador o estabelecimento de sacerdotes, hierarquia, cerimônias e rituais. É certo que a pessoa pode partir do que sabe para atingir o que ainda não sabe, mas é certo, também, que ela pode não fazer a posterior distinção entre as ideias. Exemplos disso tivemos nos últimos anos - e ainda temos. Um deles, ao tentar impedir que o Centro do qual somos coadministrador começasse a ser encarado como Igreja. Outro, ao tomarmos conhecimento que uma pessoa conhecida cismou de usar uma aliança no dedo, simbolizando seu compromisso com a Doutrina. O uso de aliança é próprio de freiras católicas, que simbolizam assim seu casamento com Cristo. Não tiraremos a aliança da mão da pessoa, nem a convidaremos a fazê-lo. Entretanto, não nos escapa à observação a possível emersão para a consciência - e daí, para o cotidiano - de experiência passada, experiência repetida e não ressignificada.

Ignoramos que mais pode prejudicar um trabalho. Quem está "fora" e ataca-o sem conhecê-lo, ou quem está "dentro" e pensa conhecê-lo. Bem estudado e meditado, o Espiritismo revela-se uma força cujas tentativas de domesticação revelam-se tão infrutíferas quanto histéricas. Em nossa experiência pessoal, representou a queda de nosso muro de Berlin. Atingindo o homem em seu âmago, exorta-o a prosseguir de onde parou e a arrumar o que desarrumou. Gostaríamos de citar duas assertivas, uma de quem rejeitou o Espiritismo e outra para quem ele parece ser indiferente.

A primeira é da autoria de Sigmund Freud, citada como epígrafe na caudalosa biografia escrita por Peter Gay. Segundo o pai da psicanálise, em texto sobre Leonardo da Vinci, "não existe ninguém tão grande para quem seja uma desonra estar sujeito às leis que regem com igual rigor a atividade normal e a atividade patológica". A segunda é do psicólogo e sacerdote católico Jean-Yves Leloup, na introdução de Terapeutas do Deserto: "o sinal de que a nossa experiência de luz é verdadeira é que ela nos permite descobrir nossa sombra". O simples fato do desencarne demonstra que a igualdade é uma lei natural, seja qual for o recipiente que receba nossos despojos. Nossa origem é idêntica em criação e natureza, idêntica é nossa submissão às leis naturais, sejamos reis ou plebeus. Todos temos trajetórias em que fomos mais ou menos felizes. Há um mesmo sentido para todos, que é a necessária evolução intelectual e moral. A forma como se dará esta evolução é pessoal e intransferível, pois se nossa origem é idêntica, somos indivíduos únicos.

Ricardo de Mattos
Taubaté, 6/1/2014

 

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