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Quarta-feira, 8/1/2014 Autoimagem, representação e idealização Pati Rabelo "Na verdade, não é só a Cindy Crawford que não se parece com ela mesma. Até carro é assim... Nenhum carro que compramos ou vemos na rua é como o da foto [da propaganda]", observou Domênico Massareto, publicitário e roteirista, ao comentar a coluna anterior, que falava da idealização que envolve as modelos plus size. E é verdade. Do sanduíche do McDonald's a um chocolate qualquer, tudo é meio anticlímax ao vivo, se comparado à sua "versão representada" no anúncio. Nessa ponderação, Domênico dizia ainda que, assim como a publicidade e a mídia representam as coisas de uma forma positivamente idealizada, cada um de nós também faz isso em relação a si. Sim, as representações que fazemos de nós mesmos (e daquilo que nos diz respeito) e oferecemos ao mundo também estão carregadas de idealizações. É consenso a ideia de que, nas redes sociais, damos preferência a mostrar os atributos dos quais nos orgulhamos. Mas é sensato lembrar que, antes da internet, as pessoas já exibiam o seu melhor na cena social, deixando as coisas nem tão legais assim pros bastidores. Afinal, quem nunca conheceu aqueles dois que brigavam a ponto de quebrar tudo em casa, mas publicamente posavam como o casal perfeito? A web se torna um palco privilegiado por desprezar as barreiras físicas relativas ao espaço, então há uma amplificação do alcance daquilo que é registrado. No Facebook, é como se cada um tivesse sua Caras personalizada, mas, em vez de lermos sobre as celebridades tradicionais, lemos sobre as pessoas de nossa rede e produzimos informação a respeito de nós mesmos. Microcelebs viramos todos. Assim, se antes precisávamos de eventos limitados a um tempo e espaço específicos para encontrar amigos e familiares e contar as boas-novas, agora desprezamos esses pré-requisitos. E, no ambiente virtual, a pessoa, seus amigos, filhos, namoro, trabalho, casamento, festas, tudo é exposto em sua versão mais luminosa e superlativa. Em tempos de internet, portanto, a frase de Machado de Assis que diz que "não há alegria pública que valha uma boa alegria particular" perdeu por completo o sentido. Afinal, pouco ou nada adianta ir pra festa bacana, se não der pra publicar a foto no Instagram. Aliás, se a festa nem estiver tão boa, de qualquer forma vale o clique: se você publica que está no melhor bar da cidade, as pessoas acreditam, e é o que importa afinal. Sob esse aspecto, Alexander de Almeida, que há pouco tempo foi queimado em praça pública após a matéria da Veja São Paulo que o intitulava "O Rei do Camarote", é só uma caricatura da maioria de nós. A diferença é basicamente quanto ao preço das coisas ostentadas por Alexander e daquelas mostradas pelos demais mortais, uma vez que, parecemos acreditar todos, a vida que não pode ser "publicizada" não vale a pena ser vivida, provavelmente diria hoje Sócrates um tanto decepcionado. E o Domênico observou por fim: "Quer ver uma diferença interessante? Observe no Facebook as nossas fotos que postamos e as nossas fotos que as outras pessoas postam de nós. Tudo muda: da nossa expressão ao cenário. E olha que louco: a gente gosta mais da 'nossa versão' de nós mesmos. A gente não se reconhece - ou nega que vê a si mesmo - nas fotos publicadas pelos outros. Como se tivéssemos autoridade para falar de nós mesmos". Não é exatamente assim? Em relação às nossas fotos que publicamos, funcionamos como uma espécie de diretor e/ou editor: se, na pior das hipóteses, não tiver sido possível definir a melhor expressão facial, pose, ângulo e iluminação na hora do clique, no mínimo, antes de publicar, teremos o poder de fazer alguns retoques digitais e de escolher, entre as várias imagens produzidas, aquela que acreditamos melhor nos representar. Já em relação às fotos dos amigos, o nosso poder de direção e edição é menor: perdemos, em grande parte ou completamente, o condão de definir o resultado final. E como nem sempre a foto em que o amigo ficou ótimo necessariamente coincide com aquela em que saímos bem, normalmente acontece um descompasso traduzido em frases do tipo "Fulano me marcou numa foto em que ele ficou lindo, e eu horrorosa". Desse modo, é compreensível por que gostamos mais da versão que publicamos de nós mesmos e por que rejeitamos aquelas publicadas por terceiros. É como se as fotos que escolhemos tivessem mais autenticidade, fossem mais fidedignas. E não deixam de ser, pelo menos se estivermos falando de fidedignidade em relação à imagem que queremos projetar de nós mesmos. No ótimo ensaio Open Secrets: Literature as Gossip in the Digital Age, Helena Fitzgerald reflete a respeito desse assunto: "Numa época de avatares e fotos de perfil interminavelmente falsificadas e alteradas digitalmente, e, dessa maneira, de personas editáveis online, todos nós somos convidados a nos construir mais perto do que sonhamos ser do que daquilo que realmente somos. A autenticidade se torna uma promessa evasiva e escorregadia, e nós também estamos nos tornando construções artificiais, seres que não são realmente nós mesmos". A autora observa que nos tornamos editáveis online, mas eu diria que essa edição ocorre na vida offline também. A definição do verbo editar, segundo o Aulete, é "preparar (texto, imagem etc) para publicação, verificando conteúdo, erros, aprimorando a linguagem". E não é exatamente isso, afinal, que fazemos o tempo todo com nós mesmos? O Photoshop se transformou no símbolo arquetípico quando falamos de edição de imagem, mas o que são luzes, tatuagens e maquiagem, senão edições que fazemos em nossos avatares físicos? E roupas, cirurgias e cortes de cabelo? Ao escolhermos o melhor ângulo e a melhor luz pra produzir uma foto, isso já não se trata em si de uma espécie de edição, uma vez que, dessa forma, corrigimos falhas e aprimoramos a imagem que queremos transmitir ao mundo? Um outro ponto a ser ressaltado é quando Helena fala que "estamos nos tornando construções artificiais, seres que não são realmente nós mesmos". Me pergunto até que ponto se pode dizer isso, e então me ocorre a visão de Robert Ezra Park, em Race and Culture, quando ele escreve: "Em certo sentido, e na medida em que esta máscara representa a concepção que formamos de nós mesmos - o papel que nos esforçamos por chegar a viver -, esta máscara é o nosso mais verdadeiro eu, aquilo que gostaríamos de ser. Ao final, a concepção que temos de nosso papel torna-se uma segunda natureza e parte integral de nossa personalidade". Especificamente sobre a questão do corpo e da imagem no ambiente digital, o estudo Impactos da internet sobre pacientes: a visão dos psicoterapeutas faz algumas ponderações interessantes. Nele, as psicólogas Carla Faria Leitão e Ana Maria Nicolaci-da-Costa afirmam que os usuários da internet "desvinculam-se da imagem corporal adquirida no mundo real e criam um corpo virtual com características muito distintas daquelas percebidas no contato face a face". Em outras palavras, no ambiente online, as pessoas simulam um corpo mais alinhado com seus desejos e fantasias. "Com o corpo camuflado, você pode revelar a imagem idealizada que quiser", diz a psicanalista Daniela Marques. Para alguns especialistas, "a internet parece ter expandido os corpos reais de seus usuários com novas habilidades. Já para outros, a rede propicia uma descontinuidade entre o corpo real e uma imagem corporal idealizada". Parece, portanto, que o que alguns psicólogos chamam de "corpo expandido" ou "corpo idealizado" é aquilo que Helena Fitzgerald nomeia como "corpo artificial" ou "falsificado". Essa possibilidade de construção de um corpo e de uma imagem lapidados conforme as nossas aspirações - assim como "a comunicação em tempo real e à distância, o anonimato, o acesso fácil à informação, a realização simultânea de diferentes atividades" - é um dos motivos da atratividade exercida pelo ambiente online. Todos esses elementos dão aos usuários da web o que Carla e Ana Maria chamam em seu artigo de superpoder pessoal. "Meus pacientes não fazem da internet uma ferramenta. Eles fazem dela um espaço de conversação, um espaço de recreação. É um facilitador de relacionamentos. Às vezes se transforma num espaço construtivo, um espaço de elaboração de sentimentos e ações. Um espaço para sentir prazeres e emoções", diz a gestalt-terapeuta Elza Barroso. A psicanalista Dora Cerqueira, ao falar de uma das suas pacientes, conta: "Ela se sente o máximo. Lá, ela sente que pode tudo. Tem força. Livre das limitações de seu mundinho real, ela se sente outra pessoa, mais forte, mais querida, mais tudo. Ela diz que a internet massageia seu ego". É mais ou menos como se, na vida offline, essa moça se visse como o Clark Kent, enquanto, na internet, ela se enxergasse como o Super-Homem. Diante disso, torna-se mais fácil entender por que, atualmente, durante os contatos presenciais com as pessoas, insistimos em manter os olhos colados na tela do celular: na vida online, tudo - nós, os outros, os objetos, os lugares - parece mais colorido, divertido e especial do que o seu equivalente na vida offline. Se aquelas mesmas pessoas que estão numa mesa de bar conosco em vez disso estivessem sendo contactadas via Instagram ou Twitter, provavelmente estaríamos mais interessados nelas. Talvez esse seja um dos motivos pelos quais alguém já disse que o nosso maior desafio hoje é ser mais interessante para os nossos amigos do que os seus smartphones. Da mesma forma que os produtos são bem mais fascinantes em suas versões representadas nos anúncios, as pessoas também são assim em relação às suas representações online. Nossos avatares no Facebook, ávidos por likes, gritam isso a todo instante. Aparentemente, as versões representadas, seja nos anúncios ou nas redes sociais, possuem atributos dos quais tanto as coisas quanto nós somos faltantes na vida ao vivo ou offline, e aí talvez resida grande parte do encanto dessas representações. * Meus agradecimentos ao Domênico Massareto, pela reflexão que gerou esta coluna, e ao Wilson Bentos, que me apresentou o fragmento do ensaio da Helena Fitzgerald citado no texto. Pati Rabelo |
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