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Quinta-feira, 26/12/2013
2013: mulheres escritoras e suas artes
Eugenia Zerbini

O ano de 2013 foi generoso para com as escritoras. Uma contista, a canadense Alice Munro (1931-), foi agraciada com o Prêmio Nobel. Sua obra é composta exclusivamente por coletâneas de contos. No Brasil, três delas foram publicadas: O amor de uma boa mulher, Felicidade demais e Fugitiva (todos pela Cia das Letras). Um corretivo em boa hora para aqueles que, de modo equivocado, vêem nos contistas romancistas de fôlego curto. Com humor, na esteira da premiação, o jornalista e também contista Marcelo Moutinho teceu observações pertinentes sobre restrições, infundadas, que ainda cercam o gênero, premiado pela primeira vez desde a criação do Nobel, em 1901." - E então, quando vem o romance?", é a questão colocada à maioria dos contistas depois da publicação do primeiro volume de contos.

Ainda não li Ms. Munro. Por falta de oportunidade. Nada contra ela nem contra contos. Sempre imaginei, porém, que a próxima mulher que a ser contemplada com o prêmio Nobel seria a também canadense Margareth Atwood (1939-) - Prêmio Príncipe das Astúrias em 2008 -, de quem acompanho a carreira há décadas. Desde a publicação, no Brasil, de Madame Oráculo, romance acerca de uma autora que publica às escondidas romances góticos e a certa altura decide reinventar-se. A trajetória de Atwood, em contraste com a contista Alice Munro, é mais variada. Além de romances - A mulher comestível, A noiva ladra, Vulgo Grace, - abarca poesia - A porta - , ficção científica - Contos da aia e Oryx e Crake -, contos -Dançarina e outras histórias - e ensaios sobre criação literária - Negociando com os mortos.

A profícua Margaret Atwood conquistou o Booker Prize, em 2000, como O assassino cego. Por coincidência, neste ano de 2013,ele foi conferido também a uma mulher. Uma jovem mulher, por sinal. Com 28 anos, Eleanor Catton levou o prêmio, com The Luminaries (em tradução a ser publicada no Brasil, pela Globo, no próximo ano). No extenso romance (mais de 800 páginas), cuja ação passa durante a corrida do ouro, na Nova Zelândia,em meados do século XIX, a mais jovem vencedora do Booker Prize, lança mãos de uma estrutura refinada. Em 12 capítulos, cada um deles corresponde a um signo do zodíaco e a um dos personagens. A ação segue o movimento dos planetas naqueles signos. Quem quiser ter uma ideia do talento de Ms. Catton procure ler O Ensaio (Record), que ela publicou aos 22 anos. Nele, há dois enredos paralelos: um que trata da repercussão do caso entre um professor, chefe da banda de saxofones de uma escola de ensino médio nos Estados Unidos, com uma das alunas. O outro, focaliza o trabalho de final de ano de uma escola de teatro para jovens. No meio deles, uma misteriosa e filosófica professora particular de saxofone. Numa parte, o tempo é contado em dias da semana; na outra, em meses. Um trabalho de arquitetura ficcional exemplar.

Já o Man Booker International Prize foi arrebatado por Lydia Davies de quem a tradução da seleta de contos Tipo de Pertubação (Cia das Letras) foi lançada neste ano. Nesse volume, Ms Davies - que participou da FLIP em 2013 - questiona o cânone do conto. Seus textos, às vezes mínimos, na escola dos haicais, pegam o leitor de surpresa. Por exemplo, em "A rua movimentada": "Já estou tão acostumada/que quando o barulho para/acho que é uma tempestade chegando". Em outro,"Rumo ao sul, lendo Pioravante marche", a ação parece estar contida nas notas de rodapé.

Escritoras foram festejadas pelos prêmios de destaque conquistados em 2013. Mas pouca atenção foi dada à façanha que uma delas - mais precisamente a norte-americana Erica Jong (1942-) - cometeu ao publicar , há 40 anos, um dos livros mais polêmicos do século XX: Medo de voar (Record). Vladimir Nabokov (1899-1977), o autor de Lolita, já alertava que os livros envelhecem melhor que as mulheres. No caso de Erica Jong e de seu Medo de Voar, será que envelheceram ambos assim, tão de repente? Quando do lançamento, Henry Miller (1891-1980)considerou-o o Trópico de Câncer feminino. Medo de voar não seria a versão feminina de O Complexo de Portnoy, de Philip Roth? Comparações elogiosas. John Updike (1932-2009), em resenha publicada no The New Yorker, comparou a obra ao O apanhador no campo de centeio, de J.D.Salinger.

"Havia 117 psicanalistas no vôo da Pan Am para Viena, e eu fora tratada por, pelo menos, seis deles. Casara-me com o sétimo". Excelente período de abertura, digno de figurar em qualquer coletânea de bons inícios. Porém, não foi ele que conferiu notoriedade ao livro, traduzido em 29 países, com mais de 20 milhões de cópias vendidas, números tidos como impressionantes na época. O choque ficava por conta do título do primeiro capítulo, que antecipava a tal frase de efeito: "A caminho do Congresso de Sonhos ou a foda sem zíper". Quatro décadas depois, ainda fico em dúvida se abrevio a expressão cunhada por Ms Jong nesse seu bombástico romance. F*** sem zíper ou Zipless f***, era a proposta da heroína de Medo de Voar, Isadora Wing. Escritora, moradora do Upper Side de Manhattan, de origem judia, com uma forte pegada "bourjois-bohême", como sua criadora (com ares de seu alter ego), Isadora assumia seu desejo, sem limites nem vergonha. Não era preciso estar perdidamente apaixonada - como as heroínas dos livros do século XIX, ou das telas do cinema dos anos 1950 - para desejar um homem e querer ir com ele para cama. E só isso, sem intenção de casar com ele ou de promovê-lo a amante. Ágil no texto, chocou o público. E, como já ensinava o grande Alexandre Dumas, se quiser entrar para a sociedade, crie uma polêmica.

"Minha resposta a tudo isso não era (não ainda) ter um caso, não era (não ainda) me perder na estrada interminável e sim desenvolver minha fantasia da foda sem zíper. Esta era mais que uma foda, era um ideal platônico. Sem zíper porque quando se chegava junto, os zíperes caíam como pétalas de rosa, as roupas de baixo voavam como felpas dos dentes-de-leão. As línguas se entrelaçavam e liquefaziam. Sua alma inteira fluía da língua para dentro da boca do amante".

"Woman is the nigger of the world", cantava John Lennon, em álbum lançado em 1972, ano anterior ao da publicação do Medo de Voar. No Brasil, o discurso da igualdade de gênero abria uma fresta de ar fresco no clima opressivo instalado pela ditadura originada pelo golpe de 1964. Não havia divórcio e "desquitada" era palavra falada com a boca torta do preconceito. A legislação penal então vigente ainda se referia ao crime de adultério; a civil, admitia o pedido de anulação de casamento por parte do marido que descobrisse que a esposa não era mais virgem, com base no conceito jurídico de erro essencial sobre a pessoa. Outros tempos, difíceis de compreender pelas gerações nomeadas pelas letras finais do alfabeto. Erica Jong causou ruído nesse cenário.

Apesar de contestatória, Jong no fundo sempre foi uma romântica. Cheia de vitalidade e bem humorada, com um humor próximo ao de Woody Allen (1935-) (que, no ano anterior ao da publicação de Medo de Voar lançara o zombeteiro Tudo o que você sempre quis saber sobre sexo, mas tinha medo de perguntar). Uma romântica com pedigree, com um texto rico em referências artísticas, em grande parte literárias:

"Mas quem era oprimida? Pia e eu éramos 'mulheres liberadas' (uma frase que não significa nada sem aspas). Pia era pintora. Eu, escritora. Tínhamos na vida outras coisas além de homens: tínhamos o trabalho, viagens, amigos. Por que então nossas vidas pareciam um resvalo de uma longa sucessão de canções tristes sobre os homens? Onde estavam as mulheres realmente livres, que não passavam a vida pulando de um homem para outro, que se sentiam completas com ou sem um homem? Voltamo-nos para nossas incertas heroínas em busca de ajuda e olhem só! - Simone de Beauvoir jamais fez um movimento sem pensar o que Sartre vai achar disso? Lilllian Hellman quer ser tão homem como Dashiell Hammett, para que ele a ame tanto quanto ama a si mesmo. E a Anna Wulf, de Doris Lessing, não consegue gozar se não estiver apaixonada, o que é raro. O restante - escritora e pintoras - é formado, em sua maioria, por mulheres tímidas, fugidias, esquizóides. Timoratas em suas vidas e corajosas apenas em sua arte. Emily Dickinson, as Bröntes, Virginia Woolf, Carson McCullers...Flannery O'Connor criando pavões e morando com sua mãe. Sylvia Plath enfiando a cabeça em um forno de mito, Geórgia O' Keefe sozinha no deserto, aparentemente uma sobrevivente. Que grupo!"

Zipless f***, mas com erudição. Erica Jong, em Salve sua vida, retomou a heroína Isadora Wing. Mas o sucesso de Medo de Voar não teve reprise. A autora deu continuidade a sua obra com Beijos e Paraquedas, Medo dos cinquenta,Memória inventada e O que querem as mulheres. No conjunto, destacam-se o delicioso Fanny, ou a verdadeira história de Fanny T. Jones, passado no século XVIII; o inventivo A filha de Shylock, ou Sereníssima, uma viagem no tempo com destino a Veneza de Shakespeare, e Safo's Leap (a história da poeta grega Safo, que viveu no século VII AC, o único romance sem tradução no Brasil, onde os demais foram editados pela Record).

Outras gerações de escritoras vieram. Entretanto ficaram longe da literatura highbrown da qual Ms Jong tanto se aproximou. Cada qual vivendo e escrevendo sobre sexo a sua maneira, bateram as marcas de venda da libertária Erica. Jong. Candance Bushnell, na década de 1990 e seu Sex and the City, fenômeno cultural, porém mais para o chick lit do que para qualquer outra coisa. Atualmente, a industria do não-sei-mais-quantos-tons-de-cinza e seus clones literários, em que o sexo, em uma marcha à ré histórica, longe de ser escolha, volta a ser submissão. Ao menos nos Estados Unidos, o Fear of Flying foi reeditado para comemorar suas quatro décadas. Em capa dura e em livro de bolso, com a mesma ilustração da capa da edição original, uma colagem pop, com direito, entre as imagens, às figuras de um cupido e de Adão e Eva expulsos do Paraíso. Será que ainda alguém lê?

Nota do Editor:
Leia também sobre Alice Munro, aqui no Digestivo, os textos "A Escolha de Alice", de Marilia Mota Silva, e "Família", de Elisa Andrade Buzzo.

Eugenia Zerbini
São Paulo, 26/12/2013

 

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