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Quinta-feira, 23/1/2014 Um livro para Fernando Morais Guilherme Pontes Coelho Sabe o que eu gostaria de ler? Um livro-reportagem do Fernando Morais sobre os cidadãos presos pela Polícia Pré-Crime de Washington, D.C., entre os anos de 2048 e 2054. É óbvio que a ideia de uma polícia que prende um cidadão já julgado antes mesmo de cometer um crime é muito errada, daí muita gente inquestionavelmente inocente, apesar de assombradas por intenções mortíferas, ter ido presa. Intenções, apenas. Quem conversaria com essas pessoas melhor que Fernando Morais? A partir de 2048, começa a operar em Washington o tal Departamento de Polícia Pré-Crime, um portento de engenharia de Estado que livrou a cidade de homicídios. Se, por algum acaso, você discute com um companheiro de trabalho e, de forma um pouco mais intensa, lhe passa pela cabeça arrancar uma pia do banheiro e arremessá-la na cabeça do colega, lá estaria a polícia para prendê-lo na hora em que você estivesse segurando a pia, fazendo força para arrancá-la da parede (se a pia não fosse digital). Você diria que jamais mataria um colega, que só estava nervoso, que queria quebrar alguma coisa, a pia, por exemplo, para se acalmar antes de levar o problema, um erro de cálculo numa planilha qualquer ou uma discordância insignificante sobre quadribol, para o seu superior ou para o gerente de recursos humanos. Você estava apenas nervoso, seria seu argumento. Mas a polícia teria certeza absoluta de outra coisa. Você ceifaria a vida de um analista contábil colega de trabalho, arremessando uma pia Deca ou Icasa no crânio dele. Antes que a vida de um pai ou uma mãe de família cessasse, lá estaria a polícia, para encarcerar, invariavelmente, outro pai ou outra mãe de família. A polícia chegaria rápido. Numa mistura de baixa ciência humana com a então alta tecnologia (naquela época, a identificação retinóica estava no auge de seu desenvolvimento, e as ruas já haviam encontrado uma forma de burlar o mecanismo: remoção total dos globos oculares, reinserção integral de globos traficados), a Polícia Pré-Crime funcionava por conta de três humanos especiais, os Pré-Cognitivos, três jovens telepaticamente intercomunicáveis, Agatha, Arthur e Dashiel, que viviam exclusivamente para o funcionamento do sistema policial. Eles jamais saiam do quartel do Departamento, nem se comunicavam, no sentido tradicional do termo, com outros seres humanos. Eles viviam imersos numa solução iônica primitiva, com vestimentas impermeáveis, e foram alimentados e cuidados por um único funcionário durante toda a vigência do programa. Os pré-cogs, como também eram conhecidos, estavam conectados à rede de computadores da polícia. A propósito, esta conexão em nada se assemelha à ligação fermiônica que temos hoje: eles ainda usavam eletrodos. Conectados, os pré-cogs previam em imagens os futuros homicídios. Estas eram imagens projetadas em simples telas de LCD suspensas no "templo", a sala onde eles permaneceram naqueles anos. As mesmas imagens eram automaticamente transmitidas para as lâminas de memória, um artefato que tem se provado insubstituível desde então, e redramatizadas e reeditadas na interface gestual, um dispositivo obsoleto mesmo naquela época, como já dizia então o ilustre e hoje esquecido Jakob Nielsen. Quando um crime era previsto, duas esferas de madeira eram pronta e mecanicamente confeccionadas pelo painel de controle do "templo". Uma, a primeira, com o nome da vítima, a segunda, com o do perpetrador. Madeira era o veículo ideal onde inscrever os nomes da vítima por causa das ranhuras intrínsecas a cada esfera. Seria impossível, e foi, falsificar uma previsão dos pré-cogs. Cada previsão era inscrita numa esfera distinta, como se cada previsão tivesse sua própria impressão digital. As esferas vinham nas cores marrom, para homicídios premeditados, e vermelha, para não-premeditados. A ideia de usar madeira foi de um dos agentes, cujo pai era marceneiro. Todo o funcionamento interno daquela polícia era incrível, uma descrição pormenorizada dela não caberia aqui nesta coluna. Para conhecer melhor os procedimentos da Polícia Pré-Crime, recomendo Órfãos do Futuro, o incrível documentário que Eduardo Coutinho fez sobre os Pré-Cognitivos, que, depois do encerramento daquela polícia, se isolaram em local desconhecido, só tendo concedido entrevistas para a película de Coutinho. Morreram logo depois. Também recomendo a leitura de Hineman Against Nature, biografia da doutora Iris Hineman, a cientista precursora da tecnologia pré-crime, escrita por David Remnick. A doutora também ganhou um ótimo perfil de Daniela Pinheiro para revista piauí. A história de como a Pré-Crime encerrou suas atividades é conhecida, ganhou até um filme romantizado, dirigido por Steven Spielberg e estrelado pelo lendário Tom Cruise, chamado Minority Report. Cruise interpretou o capitão John Anderton, um viciado em Clarity que morreu de overdose logo depois que a Pré-Crime fora fechada. No filme, Anderton volta para sua esposa e eles vivem felizes para sempre. Mas o filme é fiel quanto ao motivo por que Anderton entrou para a nova unidade policial: o desaparecimento insolúvel do seu filho, Sean. O que não mereceu até agora nem filme, nem documentário, nem livro, foi a vida pós-Pré-Crime dos futuros perpetradores ex-detentos. Alguns foram monitorados pela polícia por alguns anos depois de 2054, por já terem cometido crimes menores antes, mas a maioria daqueles detentos nunca matou uma mosca. Foram presos por crimes que efetivamente não chegaram a cometer. Foram presos por homicídio, sem jamais terem assassinado ninguém. Eles chegaram a ser reinseridos na sociedade? Como a família lidou com absolvição deles? Muitos dos homicídios previstos, sobretudo os não-premeditados, eram entre familiares. Por que nunca nenhum detento processou o Estado? O êxodo dos ex-detentos para outras cidades foi voluntário ou involuntário? Enfim, tenho muitas perguntas, queria saber mais sobre eles. Taí uma dica de livro, Fernando Morais. Guilherme Pontes Coelho |
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