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Terça-feira, 4/2/2014 Margarida e Antônio, Sueli e Israel Duanne Ribeiro 1. Meu avô contava uma história tragicômica: engraxou os sapatos de um qualquer e adquiriu com o dinheiro um enorme sanduíche de mortadela, mais guaraná. O sanduichão lhe deixou empanzinado; ficou por ali, perto da padaria, exausto, cara de quem não conseguia dar um passo adiante. Então veio uma moça, disse assim: "Coitado! Deve estar com tanta fome!"; foi à padaria e comprou outro lanche. O engraçado é essa fartura instantânea - que a caridade tenha vindo justo quando menos necessária, e até recusável, que a saciedade tenha aparentado penúria. De outro ponto de vista, o meu, o que impressionava era que meu avô tivesse tido de trabalhar, criança, para arranjar comida. A distância entre isso e a vida de classe média que ele me proporcionava sempre possuiu esse caráter peculiar. Nascera em Santo Antônio do Pinhal, em São Paulo, e viera à capital. Depois da morte da mãe, seu pai lhe forçava a trabalhar e trazer para casa tantos cruzeiros. Não trouxesse, apanhava. Trouxesse, podia ser que apanhasse também. Com sete anos, fugiu. Viveu um tempo na rua - era engraxate no Largo da Concórdia, no Brás. Depois foi acolhido por uma série de lugares: um quartinho numa lanchonete, a casa de uma professora, um colégio de freiras. Meu avô era do gênero de menino que um segurança das Lojas Americanas achou por bem espantar com pauladas. Tornou-se escriturário, passou a morar com suas irmãs, saía da empresa em que trabalhava e à noite era lanterninha na Avenida Guilherme Cotching; de domingo vendia revistas na feira. Minha avó conta uma história com um fundo político que talvez ela nunca tenha percebido, por, como é típico, conceber "política" como a atividade de uma classe restrita de profissionais, burocratas mais ou menos benevolentes, carismáticos e ferozes. Na sua cidade natal, Taquaritinga do Norte, em Pernambuco, ela, cerca de 14 anos, e seus irmãos menores trabalhavam na fazenda de um padre. Carregavam o esterco e o depositavam nos buracos onde seriam plantados os pés de café. Findo o serviço de um dia, o tal padre propõe pagá-los com comida. "Eu não estou passando fome não", exclamou minha avó, "eu quero o meu dinheiro. Se você não me der, eu volto lá e tiro tudo que eu coloquei". Ele ainda tentou argumentar: "Mas seus irmãos foram lá comer"; porém ela estava irredutível. Tem coisas que não se aceita, portanto. Juntava quanto ganhasse para comprar um vestido e ir à Festa de Santo Amaro. O seu pai teria feito um mal negócio e perdido uma boa terra que tinha de herança, e ficaram pobres. Cultivava a terra alheia, não bebia, "nunca encostou o dedo na gente - mas minha mãe, ah! era brava!". Minha bisavó lavava roupa "pro pessoal estudado de São Paulo", gente de terno branco e gravata. (A manufatura do seu status, assim, quem fazia era ela.) Os filhos não estudaram: a escola era longe, precisava levar cadeira e nem sempre funcionava. Quem lecionava era uma menina pouco mais velha. Por ser negra, minha avó, racista, não queria aprender com ela. (Um dia a mãe descobriu que não ia à aula e lhe bateu.) Ele foi também músico, envolveu-se com a política profissional e trabalhou para Jânio Quadros (meu bairro, a Vila Maria, era seu principal reduto eleitoral). Ela veio a São Paulo para ser operária, trocando os fusos da máquina que um dia lhe esmagou dois dedos (mesmo assim, crê que Lula forjou a perda do mindinho). Os dois se casaram com quase nada. Três anos depois, foram roubados, levaram até o dinheiro do porquinho da minha mãe, além de todas as roupas do meu avô. 2. Minha mãe foi datilógrafa; iniciou a graduação para Tradutor e Intérprete e não concluiu (minha gravidez foi de alto risco e dificultou os estudos); formou-se em instrumentação cirúrgica e não exerceu (pelo estresse do trabalho, por frustrações anteriores, pela falta de perspectivas da profissão); foi secretária de Milton Nakamura, médico pioneiro da reprodução assistida no Brasil, 'pai' do primeiro bebê de proveta (os direitos trabalhistas devidos a ela não foram pagos e a cobrança se arrasta na Justiça desde 1998); foi lojista e camelô; foi produtora cultural na Bahia, onde promoveu um show de Zé Ramalho; administrou um canil, uma empresa de telemarketing, uma agência de intercâmbio, hoje é confeiteira. Também foi escritora - publicou contos e poemas em uma antologia. Minha avó e minha mãe são pessoas fortes, em certo sentido resilientes, em certo sentido incansáveis. A solidez de que tive o privilégio durante a infância (quando com os meus avós) e adolescência (quando com a minha mãe) contrasta demais com o que tiveram de enfrentar meu avô, minha avó e minha mãe. Mais essencialmente, essa solidez é resultado inequívoco do esforço deles, do trabalho - na medida em que o termo signifique também autonomia, resistência, autorealização. Minha madrasta uma vez me disse que a primeira coisa que comprou da casa onde mora hoje com meu pai foi a placa com o número. Só havia o dinheiro para isso - grão a grão foi-se fazendo todo o resto. A vida precisa de uma admissão da lentidão do sucesso. O meu pai, ele foi balconista de loja, caixa de banco (chegou a subgerente) e hoje recolhe amostras para análise industrial - nesse emprego, horas e horas dirigindo e a má qualidade do carro cedido pela empresa lhe causaram problemas crônicos nas costas. É de uma regularidade, de uma paciência construtiva, de uma calma mais ou menos contente. A lembrança mais marcante que tenho de meu pai foi quando, num dia de chuva, em que não havia chance de ir à piscina do prédio, ele me levou à piscina do prédio. Nadamos em contravenção. A vida precisa da quebra deliberada do cotidiano. 3. Para escrever este texto, gravei minha avó contando uma série de histórias. Uma coisa curiosa ocorreu, inversa aos meus propósitos. Enquanto falava de como as camas na sua casa no Nordeste eram feitas de vara, disse: "Mas isso é melhor não falar, né?". Quer dizer, se envergonhava, ao menos um pouco, do que era - se acanhava de ter sido pobre. Não creio que o embaraço dela seja exceção; parece comum que as classes subalternas desaprendam o valor da sua identidade, do seu trabalho, da sua memória. Eu acho, pelo contrário, que é preciso saber dizer: me orgulho. É justamente pela sua habilidade política que as pessoas de origem "ilustre" dão à sua origem esse adjetivo. Não que seja o caso de dizer que toda origem é ilustre, a questão é que a suposta ilustração é a parte menos importante - origem, a mais. A originalidade de cada percurso até o meu percurso particular são relações com (e apesar de) a cultura, a economia, a sociedade. É preciso dizer: me orgulho. Com sorte, pode ser que o reconhecimento da própria particularidade leve a ver as ligações com a alheia. Minha avó, por exemplo, notaria que a discriminação de que são vítimas os imigrantes bolivianos na capital paulista é idêntica a que os nordestinos como ela sofreram. Se o intuísse, deixaria de confirmar aquela frase de Paulo Freire em A Pedagogia do Oprimido: "O oprimido engendra o opressor". 4. Quando eu me formei em jornalismo, meu avô tinha sofrido um AVC, estava com as pernas enrijecidas e atrofiadas, assim como seu braço esquerdo. Suas costas criavam escaras e ele padecia de refluxo. Eu apresentei com altivez os fatos de ter terminado o curso e do meu trabalho de conclusão ter levado nota máxima e, além disso, ter sido premiado fora da faculdade. Se eu me lembro bem, ele só me olhou por um tempo, parabenizando, e então disse: - E agora? Duanne Ribeiro |
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