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Quarta-feira, 19/2/2014
Defensores da Amazônia
Marilia Mota Silva

A revista National Geographic de janeiro traz na capa o rosto pintado de um menino índio e o título: "Guardiões da Amazônia".

São vinte e seis páginas dedicadas ao assunto. Dezesseis trazem cenas da vida na floresta, belas paisagens, corpos pintados, cocares magníficos, mapa da reserva, canoas de alumínio, índio fazendo compras em supermercado.

Coragem caiapó, diz o título da matéria. "A tribo da Amazônia venceu fazendeiros, garimpeiros e, famosamente, parou a construção de uma represa. Agora, com seu jeito de viver ameaçado, seus líderes precisam lutar de novo".

Chip Brown, jornalista da National Geographic, conta que fez a última etapa da viagem num monomotor Cessna e trouxe tabaco, anzóis e cerca de dez quilos de missangas tchecas de presente para seus anfitriões. Tabaco e pedrinhas de vidro, reafirmando a tradição, embora os caiapós usem celular e computador.

A equipe foi recebida por Barbara Zimmerman, diretora do Fundo de Defesa Ambiental Canadense-Americano, que trabalha com os caiapós há mais de vinte anos.

A reserva dos caiapós é uma das maiores expansões de floresta tropical protegida no mundo. Diz o artigo: "É do tamanho do estado de Kentucky, e nela habitam 9 mil índios, a maioria dos quais não sabe ler ou escrever e ainda segue uma economia de subsistência. Ainda assim, eles adotaram recursos e tecnologia moderna com grande facilidade: tem barcos a motor, computadores, páginas no facebook, armas de fogo, mas 'sem comprometer a essência de sua cultura'".

Graças ao especialista em caiapós, Terence Turner, da Universidade de Cornell, os caiapós usam video-câmeras para registrar seus rituais e cerimônias e suas interações com o governo brasileiro. E como na reserva há painéis de energia solar, antenas de satélite e alguns aparelhos de televisão, os índios assistem a seus próprios rituais e a novelas brasileiras. Difícil imaginar um meio mais eficaz e lastimável de aprender sobre a "cultura brasileira".

Voltando ao artigo: "Os caiapós fizeram acordos com empresas de mineração e madeireiras, dando-lhes concessão para exploração de ouro e mogno em sua reserva, mas se arrependeram, e isso diminuiu bastante".

Chip Brown reflete, a certa altura: "Uma das mais ricas ironias da Amazônia é que os 'civilizados', que passaram cinco séculos evangelizando, explorando e exterminando os aborígenes, agora se voltem para eles, para salvar o ecossistema, reconhecido como critico para a saúde do planeta - para defender áreas essenciais da terra não desenvolvida contra o insaciável apetite do mundo desenvolvido".

De fato, ironia não falta nessa história. Os caiapós são um povo inteligente, saudável, independente, dono de vastíssimo território, e que sempre soube se defender muito bem! Então o que fazem funcionários de governos, ONGs, antropólogos estrangeiros, estabelecidos em suas terras? Estão lá para defendê-los, para proteger o meio-ambiente?

The Lexus and The Olive Tree, livro de Thomas Friedman que fala de globalização, publicado em 2000, dá uma pista (pg. 36). Glenn Prickett, vice-presidente do grupo ambientalista de Conservação Internacional conta de sua visita a aldeia caiapó para inspecionar o progresso da estação de pesquisa biológica que eles mantêm lá:

"Os caiapós defendem um grande pedaço intacto da Amazônia, por séculos, na pura força. Agora eles estão aprendendo a proteger suas terras através de alianças com cientistas internacionais, conservacionistas, e homens de negócios socialmente conscientes. Sua vila tem uma pequena rua principal com uma loja da Conservação Internacional e uma filial da Body Shop, ecoconscientes fabricantes de sabão".

Essa marca vende uma infinidade de produtos, perfumes, cosméticos, uma vasta linha de produtos da Amazônia.

Imaginem a Natura, o Boticário, pesquisadores brasileiros, laboratórios ou universidades brasileiras, instalados em território americano, nos desertos do oeste ricos em urânio, no Grand Canyon, nos pântanos da Flórida. Se nem no setor bancário há reciprocidade! No Brasil, o Citibank, por exemplo, oferece todos os serviços, conta-corrente, poupança, fundos de investimentos, financiamentos. Nos EUA não há agência de banco brasileiro que preste esses serviços; não há nada equivalente.

Continuando com Friedman: "O pessoal do grupo de conservação se reuniu com os líderes da tribo na 'casa dos homens'. Eles notaram que os índios estavam atentos à televisão, mudando de canal a toda hora, entre um jogo de futebol e um canal de negócios que dava a cotação do ouro no mercado mundial. Os caiapós cobravam dos garimpeiros que trabalhavam na reserva de acordo com a cotação internacional. E usavam o lucro para proteger seu estilo de vida no meio da floresta tropical".

Um paradoxo e tanto! Garimpagem, mercúrio, destruição do meio ambiente, televisão, dinheiro, lucro: que estilo de vida é esse que estariam protegendo?

O artigo da National Geographic suscita muitas perguntas, nem uma delas tem resposta fácil.

As reservas dão ao índio o direito de viver como prefere: na floresta e da floresta; para proteger a floresta; fora da sociedade baseada em dinheiro; fora da sociedade de consumo. Ou dentro, desde que mantenham suas tradições? Quais seus compromissos?

Belo Monte: que tipo de desenvolvimento queremos, a que preço, quem paga, quem se beneficia, há alternativas, qual o custo-benefício?

Países mergulhados na produção industrial e no consumismo, usando gás, óleo e carvão como fontes de energia - cabe a eles dizer o que o Brasil pode ou não fazer em termos ambientais?

Tribos estariam se relacionando com nações estrangeiras como se fossem um país? Nossa constituição não permite; só existe uma nação, o Brasil.

Qual a reciprocidade que o Brasil recebe quando permite que pesquisadores de empresas e universidades estrangeiras -sempre implacáveis em questões de patentes e royalties - se estabeleçam em suas reservas, explorando a selva e os conhecimentos dos índios, sob o manto do ambientalismo?

O que me espanta é que uma etnia com esse número relativamente modesto de membros, os caiapós tenham conquistado uma área do tamanho de uma Islândia, enquanto a área do Parque do Xingu, dividida entre uma variedade grande de etnias, é bem menor", disse a escritora Vera Moll, que estuda os índios Guarani, há alguns anos, e está em fase de conclusão de seu livro sobre eles, seu sétimo romance. Estranho também que quem esteja ali para receber o autor da reportagem seja a senhora Barbara Zimmerman, representante de uma entidade canadense-americana.

Considerando que eles sabem de nós mais do que nós mesmos, como as denúncias recentes comprovam, essa campanha toda em defesa da Amazônia gera dúvidas e desconfiança.

Marilia Mota Silva
Washington, 19/2/2014

 

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