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Segunda-feira, 26/5/2014 O corpo em que nasci, de Guadalupe Nettel Ricardo de Mattos Guadalupe Nettel in letraslibres.com "Como em outras ocasiões, encontrei companhia e cumplicidade no espaço da leitura" (Guadalupe Nettel). As resenhas sobre O Corpo em que Nasci da escritora mexicana Guadalupe Nettel reforçaram-nos a convicção de que foram escritas - na melhor das hipóteses - a partir da leitura das primeiras páginas da obra ou, no máximo, do primeiro capítulo. Por um lado, há a compreensível sobrecarga de seus responsáveis, quiçá recebendo mais livros do que terão tempo para ler (ô vida difícil...). Por outro, podem criar no leitor suspeitas que depois não se confirmem. Chegamos à obra por motivos diversos. A cada livraria que entrávamos, o livro estava em destaque entre os lançamentos - e em São Francisco das Chagas de Taubaté, isto significa que tal encontro deu-se três vezes. A revista e o jornal assinados pelo pai trouxeram as referidas resenhas. Acabáramos de ler A ninfa inconstante, do cubano Cabrera Infante e gostamos da ideia de continuar com a literatura hispano-americana. Decididos pela leitura, imaginávamos encontrar um livro simbolista, um texto que eventualmente refletisse as névoas em meio as quais a escritora viveria. Ocorre que Nettel nasceu com uma deficiência no olho direito: \ Esta deficiência rendeu-lhe alguns anos de severo incômodo decorrente da terapia então adotada: "Isso se fazia com movimentos oculares semelhantes aos que propõe Aldous Huxley em A arte de ver mas também - e é do que mais me lembro - através de um curativo que me tampava o olho esquerdo durante metade do dia". Não foi uma entrada fácil. Apesar disto, torna-se apenas ocasionalmente ao específico tema ocular, predominando a descrição dos anos de formação da jovem Nettel. O que não deixa de significar a superação gradativa da falha congênita. Reforça esta ideia o fato da escritora, quando uma menina tímida, valer-se de uma luneta para observar o mundo e estabelecer os primeiros contatos sociais, ainda que tímidos e tragicamente interrompidos. No livro encontra-se uma salada de referências psicológicas. A narrativa dá-se diante de uma doutora Sazlavski, silenciosa conforme o estereótipo do psicanalista. Suspeita a escolha da especialização. Caso o leitor interesse-se pela obra, verificará que em determinado período de sua vida, Nettel apresentava o pai como psicanalista. Já o tratamento realizado pela escritora quando criança, por médicos do México e do vizinho Estados Unidos da América, visando criar o esquema de estímulo-resposta, traz fumos do comportamentalismo que viceja por aquelas bandas. Por fim, a localização social obtida na época escolar com o recurso à facilidade para a escrita, compensando um déficit com um talento, fez-nos lembrar do pouquíssimo que conhecemos sobre a teoria de Alfred Adler. Mais do que isto: vemos a dimensão noética - ou espiritual - ultrapassando os limites da dimensão biopsíquica que lhe serve de instrumento, tal como Frankl preconiza ser capaz todo ser humano, apenas por ser humano. O nome de Wilhelm Reich é citado com discrição. A par disto, verificam-se também a presença do psicologismo, aqui significando o emprego sempre descuidado da psicologia pelo senso comum. Durante a infância, o entusiasmo de seus pais fê-los infiltrar em sua educação ideias que eles mesmos não haviam absorvido direito. O que originou situações cômicas, mas permitiu-lhe encontrar resposta mais madura. A caminho da escola, a menina perguntou aos pais por que as pessoas mantêm relações sexuais. "Para sentir prazer", responderam-lhe, talvez um tanto constrangidos, mas satisfeitos de seguirem a cartilha vigente e, por isto, crentes de terem dado a melhor réplica. Empolgaram-se e compararam a relação sexual a comer chocolates. "Comer chocolates! Com uma resposta assim, o mais provável era que uma menina desejasse fechar-se esta manhã mesmo no banheiro do colégio com o primeiro homem que encontrasse em seu caminho. Por que não lhes ocorreu responder, doutora Sazlavski, que as relações sexuais se têm por amor e são uma forma alternativa de demonstrá-lo?". Faça-se justiça. A mãe pode não ter sido gentil ao comparar a filha com uma barata, referindo-se a sua postura encurvada. Todavia, o saudável efeito colateral teve lugar quando a jovem leitora deparou-se com A Metamorfose, de Kafka, e identificou-se a partir das primeiras linhas com a narrativa da transformação de Gregor Samsa. O mundo dos livros sempre foi o refúgio e a fonte de subsídios para compreensão do mundo. A identificação com o texto de Kafka consolidou este relacionamento. Da criação por pais mais confusos do que gostariam de reconhecer, Nettel foi entregue aos cuidados da avó materna. Não cabe aqui a história de que os pais educam e as avós estragam. Si a menina parecia aprender junto com os pais a respeito do mundo contemporâneo, a entrega transitória à avó implicou no retrocesso à educação de moças do século XIX. Verdadeira imersão na disciplina familiar - isto podia, aquilo não - e negligência de sentimentos e cuidados básicos. Importante era a compostura da roupa e do porte. O rotineiro improviso da alimentação e a necessidade de uma crise de choro para demonstrar o quanto a menina gostava da prática de um esporte foram tratados como questões menores ou caprichos. Porém cremos que, pior que a negligência e o descaso, é a assimilação daquilo que criticamos ou a equiparação àqueles que contestamos. Certo desolamento atinge-nos quando outros falam, mas são nossos lábios que se movem. A escritora conta que sua avó "Estava cheia de manias e costumes estranhos, alguns dos quais fui adquirindo sem me dar conta". Após o sofrível estágio, a jovem vai morar com a mãe na França. Neste país, ficou evidente que o ponto nevrálgico de sua existência não é a visão, mas o deslocamento social que sempre a acompanhou. Seu gosto pelo futebol levava-a à companhia dos meninos. Entre eles, não logrou convivência isenta de conflitos. Entre os colegas da escola, era alguém de parca sociabilidade. Foi morar num bairro de excluídos e conseguiu sentir-se excluída entre eles: "A maioria dos vizinhos era de origem magrebe mas também havia franceses, africanos negros, portugueses, asiáticos e ciganos assentados. Por mais que perguntássemos, não conseguimos encontrar nenhum latino". Por diversos motivos que o leitor poderá conferir, foi cautelosa a aproximação da escritora com o mundo. Poderá verificar que nem toda aproximação foi grata, que nem toda pessoa apresentada tornou-se amiga, alguém disposta ao mutualismo inerente à ligação. Em uma das famosas Cartas a um jovem poeta, mais precisamente a de 16 de julho de 1903, Rainer Maria Rilke define bem esta situação quando escreve: "Diz que os que sente próximos estão longe. Isso mostra que começa a fazer-se espaço em redor de si. Se o próximo lhe parece longe, os seus longes alcançam as estrelas, são imensos". Reencarnamos num corpo mediante o qual estabelecemos relações, retomamos afinidades e antipatias, aprendemos, comemos chocolate e coçamos a barriga de cachorras eternamente carentes. Ugo Betti afirma que "há uma certa paz em ser o que se é e em o ser completamente". Quanto ao corpo individual, Nettel aceita-o com todas as suas peculiaridades, e a impossibilidade de um transplante não adquiriu conotação dramática: "... decidi habitar o corpo em que tinha nascido, com todas as suas particularidades. No final das contas era o único que me pertencia e me vinculava de forma tangível com o mundo, ao mesmo tempo que me permitia distinguir-me dele". Percebemos que o corpo também adquiriu dimensão social, o que não é absurdo se pensarmos na terminologia que empregamos no cotidiano: corpo de bombeiros, corpo docente, corporação, corporativismo. Finalmente em paz com o corpo em que nasceu, definidos seus limites e aparadas expectativas "soltas", o próximo passo foi a aceitação dos demais membros do corpo maior e a estabilização dos laços. À guisa de conclusão "Hoy la filosofía, en especial a través de los múltiples movimientos personalistas, ha subrayado el valor de la persona, única en su individualidad, libre, irreiterable e insustituible. Pero es una persona comprometida en un mundo y que existe no solo 'con' un cuerpo sino 'en' un cuerpo. Pero la infraestructura corpórea debe ser puesta al servicio de la transcendencia del espíritu que ve y ama" (Mandrioni, Introduccion a la filosofía). Imagens Ilustram a coluna imagens de quadros da pintora mexicana Frida Kahlo (1907-1954), cujo corpo, por acidente, também deu-lhe o que penar. Ricardo de Mattos |
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