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Quarta-feira, 25/6/2014
O Oeste Selvagem
Marilia Mota Silva

Mais um massacre nos Estados Unidos, no final de maio, dessa vez na California. Outros dois ou três, com menos vítimas, no começo de junho. O assunto ganha o noticiário por um dia ou dois e logo perde espaço. O assassinato casual de crianças e jovens, o horror inominável, não é mais novidade; incorporou-se à esfera dos fatos que nos superam, como incêndios, tornados, terremotos: alguém que não aprendeu a lidar com as frustrações da vida, pega algumas armas e sai matando; quer vingar-se de quem supostamente o rejeitou, desabafar a raiva.

A cobertura da mídia, com a repetição do fato, tornou-se previsível: no momento agudo, quando pais encontram o filho entre os mortos, a televisão, a postos, suga deles toda a dor possível. Amigos, colegas sobreviventes dão entrevistas. Em meio à perplexidade, surge algum nome conhecido, uma "celebridade", que reafirma que não importa quanta gente morra, nada afeta o direito do cidadão se armar, sem restrições: "Seus filhos mortos não abalam direitos constitucionais", disse Joe the plumber, (um personagem que teve seus 15 minutos de fama na última campanha presidencial americana), dirigindo-se a um pai que acusou a National Rifle Association (NRA) e políticos covardes pela morte de seu filho único.

O direito de se armar foi incluído na Constituição, escrita há mais de 200 anos, quando os Estados Unidos venceram a guerra contra a Inglaterra, tornando-se independentes. A ideia era garantir aos cidadãos o direito de se defender contra a eventualidade de um governo despótico, como o da coroa britânica, de que tinham acabado de se livrar. Era um bom motivo e decerto está aí a gênese de um traço cultural admirável, que diferencia o cidadão dos Estados Unidos de outros povos: eles não olham ninguém de baixo pra cima. Reverenciam as instituições, respeitam os cargos, a história, mas não se curvam automaticamente à figura no poder. Não há servilismo, não tem beija-mão. Ao contrário: eles não dão trégua às pessoas que elegeram, cobram seus serviços, como de funcionários que lhes devem prestar contas.

Mas há o outro lado: com base nesse artigo constitucional, a indústria de armas floresceu. Duas guerras mundiais depois, e outras tantas, poucos hoje conseguem avaliar a dimensão de seu poder. Um poder exercido com mão-de-ferro e tolerância zero, mesmo em questões ínfimas e domésticas, como nesse caso, por exemplo:

Um jornalista especializado em armas, professor de história em Cornell e Yale, Sr. Metcalf, escreveu em sua coluna, na revista sobre armas Guns & Ammo, que "todos os direitos constitucionais são regulamentados, sempre foram e devem ser". Bastou isso. Foi demitido, a despeito dos vinte anos de serviço, e de sua coluna ser das mais lidas. Seu programa de televisão foi tirado do ar. Suas viagens pelo mundo, patrocinadas por fabricantes de armas, acabaram. Parece uma reação exagerada, mas a mensagem ficou clara: a coleira é curta, obedeça seu dono.

A mão invisível do mercado, muitos acreditam, se deixada livre, alcança o equilíbrio. O problema é a outra, a mão visível, tão autocrática quanto pode ser o Estado se deixada livre.

"O direito de se armar deveria ser o primeiro artigo da Constituição porque é o que garante todos os outros direitos. Sem ele, nenhuma liberdade existiria. Monstros como Hitler, Mussolini, Stalin, Mao, Idi Amin, Castro, Pol Pot começaram por confiscar as armas do povo para, em seguida, literalmente, ensopar a terra com o sangue de milhões de pessoas", disse o ator Charlton Heston, em um de seus discursos como representante da NRA.

No entanto, ninguém pretende que se dê ao Estado o monopólio das armas e da violência, caso em que, além do Estado, apenas os fora-da-lei viveriam armados. Os que acreditam nas leis pedem apenas que se faça algum controle sobre o comércio e porte de armas: que não se vendam armas e munição a alguém em tratamento psiquiátrico, por exemplo.

Michael Bloomberg, ex-prefeito de Nova Iorque, que entrou para a política depois de enriquecer com a agência de notícias que tem seu nome, resolveu investir parte de sua fortuna, criando associações que lutam para regulamentar a venda de armas. Acostumado com o sucesso, ele agora enfrenta um inimigo duríssimo, e cada vez mais poderoso: a indústria de armas e o mito.

A crença de que não há democracia nem direitos humanos sem um povo armado que os garanta é um mito muito caro à boa parte da população dos Estados Unidos. Uma crença que vem ganhando força, na medida em que a fé na "maior democracia do mundo" sofre abalos. Um "Patriot Act" e tudo o que se segue mostram que, hoje, ninguém está a salvo: um governo pode derivar para a tirania, discretamente, sem necessidade de tanques e fuzis. A espionagem sobre os cidadãos, por mais insuspeitos, a invasão ilegal da privacidade, de todos e qualquer um, tirou do conforto um povo acostumado a confiar em suas instituições. Some-se a isso a frustração gerada por um sistema econômicos baseado no crédito e consumo, mais eficaz que algemas: trabalha-se para pagar a casa, o carro, o seguro, os impostos.

E aqui estamos. Os recursos tecnológicos que mudaram nossas vidas, as relações sociais, as formas de controle e exercício do poder, também estão nos revelando como pessoas e sociedade. É notório nosso embrutecimento.

Precisamos retomar a ideia de um novo Iluminismo.

Nota do Editor:
Leia também "Perfil Indireto do Assassino", de Duanne Ribeiro.

Marilia Mota Silva
Washington, 25/6/2014

 

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