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Terça-feira, 29/7/2014 Simone de Beauvoir: da velhice e da morte Jardel Dias Cavalcanti No seu livro Por uma moral da ambiguidade, a pensadora francesa Simone de Beauvoir resume a questão do homem e da vida a partir daquilo que a filosofia do existencialismo defendia: "O homem não se justifica por sua simples presença no mundo. O homem só é homem por sua recusa em permanecer passivo, pelo vigor com que se projeta do presente para o futuro e se orienta para as coisas, a fim de dominá-las e dar-lhes forma. Para o homem, existir é refazer a existência. Viver é a vontade de viver". O texto acima foi escrito em 1947, uma data um pouco distante do momento em que Simone de Beauvoir enfrentaria sua velhice e a presença da morte. Tendo visto seu companheiro Jean-Paul Sartre partir e aguardando a própria morte a pensadora deixaria de lado a ideia da vida como "vontade de viver", como expressou no texto citado acima. Para Simone e Sartre, aspiração e atividade definem o homem e o libertam. É a luta para inventar e moldar o futuro que nos faz romper o ciclo da repetição biológica inexpressiva e o que nos distinguiria dos animais. O homem só se torna livre realizando um projeto concreto, baseado na sua busca pela liberdade. Apesar da ideia de afirmação, o existencialismo tem um toque de pessimismo. A vida, em si mesma, não tem sentido. Nossa condição no mundo é absurda. Não existe uma justificativa para a existência. Ateísmo e existencialismo se casam como a mão e a luva. Se há uma possibilidade para dar um sentido para a vida, ele só pode ser dado pela ação. Embora nascido para morrer, o homem é um ser com aspirações, um ser único, individual e consciente. A moral existencialista proclama, a partir dessa consciência do homem, a necessidade de autenticidade na ação humana, fundada numa escolha individual responsável e consciente. A despeito do engajamento necessário num mundo desumanizado, a recusa de Simone em curvar-se a qualquer dogma e mistificação permanecia como centro da afirmação de sua liberdade. Manter a própria inteligência continuaria a ser a primeira e principal responsabilidade para consigo mesma. Mas a melancolia que o avançar da idade trazia produziria seus efeitos sobre a mulher que inventou a si mesma. A morte de amigos e a do companheiro Sartre, a decadência física e mental que se ia avizinhando, a percepção da perda do interesse pela leitura entre os jovens (que seriam seus futuros leitores), fez dos seus sessenta anos um momento de reflexão sobre a possibilidade do fim. No turbilhão das reflexões sobre a aproximação da morte, Simone ainda daria ao mundo um livro monumental e tão radical quanto o O Segundo sexo". A obra, publicada em 1977, se chamaria A velhice. Para a pensadora, tal qual a condição da mulher, a velhice é um fato cultural e não apenas biológico. A sociedade fabrica a impotência da velhice, tal qual fabricou a da mulher. Submetida à alienação social, a velhice torna-se um mal para o homem, condição abjeta aos olhos do mundo e ao qual os velhos são obrigados a ler a si mesmos. Ela diz: "Dentro de mim, está a Outra - isto é, a pessoa que sou vista de fora - que é velha: e essa Outra sou eu". O livro A velhice teve como objetivo "desmascarar esse escândalo", condenar esse sistema deformador e mutilador. E para radicalizar, Simone volta a tocar no tema da sexualidade. E como fizera com a questão feminina-desejante, seria agora a velhice-desejante o tema também perturbador. Para a autora, embora o corpo decaia em suas forças, o desejo sexual persiste. A sociedade recusa-se a admitir, mas o velho tem desejo sexual. Esse desejo, no entanto, é tratado como objeto de ridicularização ou como se o velho que tivesse desejo sexual fosse apenas um tarado. No caso da mulher velha, pior ainda. "Não existe espaço, não existe iconografia na nossa cultura para a representação dos desejos dela, através dos quais a expressão pessoal, ou, até, a identificação, possa ser possível. Para ela, como para os demais, a mulher possuidora de desejos parece uma louca". A Questão da Morte Mais do que uma simples questão teórica, a morte aparece para Simone de Beauvoir como uma ameaça ao seu projeto existencial. Assim, ela diz: "Desde o momento em que eu soube que era mortal, a ideia da morte me aterroriza. Mesmo quando o mundo estava em paz e a minha felicidade parecia assegurada, meu ser, então com quinze anos, muitas vezes era tomado de vertigem ao pensamento daquele total não-ser - meu total não-ser, que desabaria sobre mim no dia aprazado e para todo o sempre. Essa aniquilação me enchia de tal horror que eu não podia conceber a possibilidade de encará-la friamente". Não há dúvida de que a morte lança sobre a filósofa uma sombra de angústia. Após a doença degenerativa de Sartre, de quem Simone cuidou nos últimos anos deixando o relato no livro Cerimônia de adeus, a preocupação com a morte se tornou constante. Na sua visão, morte e velhice andam juntas: "A morte da gente está dentro de nós, mas não como o caroço no fruto, como o sentido da nossa vida. Dentro de nós, mas estranha a nós, como um inimigo, como uma coisa a temer. Nada mais importa. Meus livros, as crianças as cartas que recebo, as pessoas que me falam sobre eles, tudo o que, de outro modo, me daria prazer, fica totalmente vazio... A morte se tornou presença íntima para mim em 1954, mas daí por diante me possuiu. Essa possessão tem um nome: velhice". É a velhice que lhe acentua a preocupação com a morte. Ela dirá: "Um dia, quando tinha quarenta anos, pensei: no fundo daquele espelho a velhice me espreita e espera por mim. É inevitável, e um dia me pega. Pois, me pegou agora". Seu temor é que seu projeto existencialista do futuro como presente superado não poderá se realizar na morte. Com a ausência de perspectiva de futuro a vontade de viver se desvanece e ela se torna vítima do Nada. Ela encontra palavras certeiras para sua melancólica relação com a morte e a vida esvaziada de sentido: "O mundo à minha volta mudou: tornou-se menor e mais estreito. Não há mais curiosidade, a loucura já não é 'sagrada', as multidões perderam a faculdade de me intoxicarem. A juventude, que um dia me fascinou, não parece mais hoje que um prelúdio da maturidade... é como se o presente tivesse sido deixado à margem da estrada". É no corpo que Simone percebe os sinais do seu vazio espiritual, não tendo como escapar de um niilismo arrasador: "Me detenho, estupefata à vista do meu rosto. Pois abomino minha aparência de hoje: as sobrancelhas caídas sobre os olhos, a rotundidade das bochechas, e esse ar de tristeza em torno da boca que vem com as rugas... Sim, é chegado o momento de dizer: Nunca mais! Nunca mais um homem. Agora não é só meu corpo, é minha imaginação que aceita isso. É esquisito não ser mais um corpo. A estranheza disso me enregela o sangue. Mas o que dói é não sentir desejos novos". Definir a mulher que se inventou para si mesma é difícil. Nas palavras de Lisa Appignanesi, uma de suas biógrafas, "como um herói de Balzac, Simone de Beauvoir supera as limitações de classe e gênero, para conquistar um lugar ao sol - primeiro como aluna brilhante; depois como professora, mulher que ganha a vida com independência; depois, como amante e companheira do mais reputado filósofo do seu tempo; finalmente, como escritora festejada e figura exponencial da esquerda e do movimento feminista. Sua longa vida foi plena de vivacidade intelectual e lucidez. Seu tempo era empregado com devoradora energia, lendo história, ficção, filosofia; vendo inúmeros filmes e peças de teatro; viajando infatigavelmente, com voraz curiosidade e espírito de aventura, embarcando em amizades e casos de amor". Em tempos tenebrosos como o nosso, fica a mensagem afirmativa e urgente de Simone de Beauvoir: "É necessário mudar a vida a partir de hoje. Não ficar contando com o futuro, mas agir sem delongas". Jardel Dias Cavalcanti |
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