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Segunda-feira, 11/2/2002 O Evangelho de Lúcifer Rennata Airoldi Existem personagens mais clichê do que Deus e o Diabo? Existe algo mais pessoal do que religião? Sem dúvida nenhuma, não é um tema nada fácil de ser discutido, seja numa mesa de bar, seja na literatura, seja num espetáculo teatral. Diz o ditado popular, há muito tempo, que em pelo menos três assuntos é impossível chegar-se a um acordo: mulher, futebol e religião. A peça “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” trata justamente dessa última e delicada questão. A obra homônima de José Saramago traz à cena, a dramaturgia de Maria Adelaide Amaral sob a direção de José Possi Neto. Não resta dúvida quanto a qualidade do texto que aborda temas como religião, fé, crença - sempre de maneira irônica, sarcástica, inteligente. Um universo rico, desenvolvido de maneira coerente pela encenação. A música sacra trazida pelo coro muito bem colocado, somada à coreografia e às ações cênicas, compõe verdadeiras pinturas barrocas, transformando o palco numa grande tela e remetendo o espectador ao universo da prece e do sagrado. Em meio a todo esse jogo de imagens, há sem dúvida nenhuma um grande destaque dado a certa figura fundamental no decorrer da trama: o Diabo. Personagem desenvolvida de maneira impecável pelo ator Celso Frateschi, é, sem dúvida, o grande “presente” do espetáculo. Com uma interpretação que vai do irônico ao dramático, salva algumas lacunas deixadas por outras interpretações menores. É triste que ainda persista a ilusão de que “estar em cena num teatro” seja simplesmente “dizer o texto para a velhinha da última fileira”. O buraco é bem mais embaixo. Acredito, sim, que todas as pessoas que se esforçam progridem naquilo que se dispõem a fazer. Nesse caso, é preciso muito trabalho antes de encarar a boca de cena. Um corpo que fala, uma voz que convence, uma pausa que emociona. Para se chegar a isso, é preciso estudo, trabalho e dedicação. Assim, precisamos lembrar que nem todo rosto que dá bom “close” será imprescindível para uma personagem teatral. Nem todos que atuam na TV são capazes de atuar no teatro, e vice-versa. Porém, aquele que encara o desafio, deve se preparar com muita antecedência pois não é fácil estar diante de uma platéia lotada (ainda mais ao lado de pessoas que sabem exatamente o que fazer para dominá-la). Isso não é coisa para um ano ou dois, e sim para muitos anos de estudo e dedicação. Não à toa existe o ditado: ator é como vinho, quanto mais velho melhor. É assim que, felizmente, depois de um primeiro ato um pouco cansativo, temos a grande redenção cênica. A cena entre Deus (Paulo Goulart), Lúcifer (Celso Frateschi), Jesus (Eriberto Leão) e o coro, que vêm redimir a todos. Somos dominados pelo que eu diria ser o ponto alto do espetáculo. Tocante, comovente, inteligente, ágil. Paulo Goulart surpreende ao trazer à cena um Deus tão humano. E Celso, um Lúcifer mais anjo que demônio. Em meio a dois grandes mestres, o jogo de cena fica perfeito, com Jesus e o coro. Sem sombra de dúvida, é imensa a coragem do ator Eriberto Leão ao encarar o desafio de interpretar Jesus. Há alguns escorregões, mas nada que o tempo e o trabalho não possam aos poucos solucionar. A Maria interpretada por Walderez de Barros é de uma sutileza tremenda que não há como não reconhecer nela a “mãe de todos”. Pena que em meio a um País que abriga atores tão talentosos, experientes, formados, ainda ocorram falhas notáveis na escolha do elenco. É sem dúvida uma tristeza que, em meio tantas dificuldades para se produzir um espetáculo teatral no Brasil, a qualidade de nossa arte seja ditada, muitas vezes, por um patrocinador que faça questão de nomes e sobrenomes. Quanto mais expostos na mídia, melhor. (De preferência, na última capa de revista e no último folhetim de maior audiência. Ou até quem sabe, um nome de alguém do último “reality show”, já que quem está na telinha hoje em dia, considera ter automaticamente uma “carreira artística”.) E assim, o teatro e o público perdem muito. Tomara que um dia essa decisão (patrocinar ou não um espetáculo), fique nas mãos de quem tem realmente boas intenções quanto ao desenvolvimento cultural de nosso País, podendo priorizar a qualidade artística em vez dos nomes impressos nos cartazes. Rennata Airoldi |
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