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Quarta-feira, 6/2/2002
As décadas são como calças
Daniela Sandler

Aconteceu. Eu sabia. E chegou, mais ou menos quando eu imaginava. Virei história – eu e aqueles que, como eu, nascidos nos anos 70, cresceram e se criaram nos 80. Mas não estou falando da História, a História solene e monumental dos livros e das retrospectivas com trilha sonora grandiosa. Nessa os anos 80 entraram por assim dizer ao vivo (por assim dizer porque o presente é obviamente histórico), com a glasnost, perestroika, queda do muro, fim de ditaduras, guerras, entre tantos outros Eventos.

Entramos na pequena história, a prima pobre – ou melhor, a prima mais nova (sim, a palavra é intencional, para evocar a História Nova e os Annales ...), a história prosaica, da vida cotidiana. A história, por exemplo, de nossos gostos musicais, das nossas roupas, das nossas formas de sociabilidade – a história das barras das nossas calças (a bem dizer, na barra da história...).

Estreou, há duas semanas, aqui nos EUA, uma comédia televisiva chamada O Show dos anos 80 (That 80’s Show). Passa na Fox, um dos principais canais da tevê aberta norte-americana. O seriado é obra dos criadores do Show dos Anos 70 (That 70’s Show), sitcom que já deve ter uns três ou quatro anos e que, no Brasil, é veiculada em tevê por assinatura.

Fetichismo

Não é novidade que os anos 70 viraram fetiche. Foi no início dos anos 90 que a música e a moda começaram a recuperar ícones da década – música e moda, aliás, são as primeiras áreas a reciclar eras passadas. Músicas “disco” voltaram às graças do público mainstream, assim como calças de cós baixo e boca larga. Grupos de música pop como Dee-lite tinham visual psicodélico – óculos grandes, estampas óticas, tons vibrantes. Não demorou para as patricinhas aposentarem as infames calças “semi-baggy”, trocando-as pelas linhas retas da Levi’s 501 e indo sacudir ao som de Gloria Gaynor e Roberta Flack.

Se a moda e a música são o termômetro mais precoce dessas mudanças, outras manifestações, como o cinema, mostram a tendência um pouco mais tarde – pela própria natureza menos imediata de sua produção. Assim, foi da metade dos anos 90 pra cá que surgiram vários filmes não apenas situados nos anos 70, como – e principalmente – focados em aspectos particulares da década. Em outras palavras, filmes em que a “época” não é simplesmente pano-de-fundo, mas fornece elementos estéticos e semânticos específicos, associados à cultura e ao contexto de que foram “retirados”. Exemplos: Tempestade de Gelo, Bem-Vindos, Boogie Nights, Cassino. Até mesmo filmes “atuais” traziam referências à década – como Jackie Brown, em que Quentin Tarantino escolheu como musa e protagonista Pam Grier, estrela do cinema “blaxpoitation” dos anos 70, e vestiu-a num inesquecível terninho acinturado, de ombros estreitos e calça boca-de-sino, que mereceu aliás toda uma cena do filme.

Lig-escargot

O passo seguinte na consagração de produtos culturais é, naturalmente, a televisão – sinal de que a tendência tornou-se verdadeiramente popular. Se chega à telinha, em geral, é porque não há medo de rejeição – mais ou menos como a praça de alimentação dos shoppings. No dia em que começou a ter sushi fast-food, estava claro que peixe cru não era mais comida que dava aflição (será que um dia vai ter Lig-escargot?).

Enfim, no finzinho dos anos 90, séries, seriados e filmes televisivos voltaram-se para os anos 70. That 70’s Show, na Fox norte-americana, fez o maior sucesso, com figurinos e cabelos caprichados, além de vinhetas caleidoscópicas, músicas de época e piadas temáticas – por exemplo, o casal aloprado que se diverte com a liberação sexual. Outra rede aberta, a NBC (a mesma que passa Friends por aqui), produziu um filme em dois episódios, no ano 2000, que se chamava, simplesmente, The 70’s. Pois é, outro sinal da TV é a falta de sutileza. Se no cinema os anos 70 impregnavam a trama com sutileza, e na maior parte das vezes com profundidade (quando a atenção voltava-se para aspectos éticos, sociais ou psicológicos da cultura da época), as produções televisivas apelaram para a obviedade, como a dizer: “Caso você não tenha notado, esse é um programa sobre os anos 70!”

Mas estou menos preocupada, aqui, com o fato de que a tevê subestima a inteligência dos espectadores, do que com a reificação e o reducionismo com que o tema foi sendo progressivamente tratado. O tal filme The 70’s, por exemplo: produção séria, dramática, sobre jovens virando adultos em meio à turbulência política e social da década. Revoltas estudantis, escândalo de Watergate, movimento pelos direitos dos negros, drogas, seitas religiosas, emancipação feminina – tudo no mesmo caldeirão. A unificação temática? A tal década de 70, ué.

Desnecessário dizer que produções como essa reduzem toda a riqueza e variedade de experiências a estereótipos. Estes, por sua vez, perpetuam uma imagem falsa, romantizada e nostálgica, adulterando a percepção histórica em favor de clichês, idéias-feitas e mistificadas. Em The 70’s, o filme sério, ainda apareciam temas e eventos da época. Já em That 70’s Show, a comédia, sobraram apenas a moda e a música – não por coincidência, se vocês se lembram do começo desta coluna.

That 70’s Show faz sucesso porque seus protagonistas são jovens iguais aos jovens do ano 2002, com os mesmos problemas, inquietações e comportamento, com as mesmas situações e formas de interação. A única diferença são os quilos de laquê – não, nem mesmo as pantalonas diferem. As prateleiras da Gap estão cheias de modelitos parecidos com aqueles usados pelos atores do show.

As décadas são como calças

Quando toda essa onda em cima dos anos 70 começou, não pude deixar de me surpreender. Afinal, cresci nos anos 80, quando a maioria abominava boca-de-sino, cabelão repartido ao meio e cultura hippie. Mas, assim que me acostumei à transformação, me dei conta de que, assim como os anos 70, toda década estaria sujeita à mesma coisa – ao repúdio inicial e à recuperação tardia. Quando vi que as batas indianas não ficariam para sempre no fundo do armário (transformadas, agora, nas blusas e vestidos em estilo “camponês”), entendi que as décadas são como calças: objetos culturais sujeitos à moda e à estilização, à apropriação estetizada e formalista para consumo de massa.

Pois é aí que eu quero chegar. Para começo de conversa (apesar de já estar no meio da coluna), o próprio fato de a gente dividir o século em décadas, e dar a cada década sua etiqueta, é um ato de reificação: é a transformação de um inefável e múltiplo período histórico em uma coisa identificável e contida. Por que não enxergamos o mundo em termos de quinzênios? Por que não contamos as décadas a partir da metade?

Antecipo alguém aparecendo com uma explicação racionalista ou matemática, ou talvez pragmática, em relação aos números, à contagem do tempo, aos algarismos indo-arábicos etc. Mas o problema não está no número, na etiqueta. O problema está em enfiar, sob o rótulo, uma série de noções congeladas, um pacote de digestão fácil. Esse pacote, no entanto, não faz jus à complexidade da época em questão, aos seus diversos eventos e idéias, implicações e significados.

Por outro lado, essa inquietante tendência de transformar épocas históricas em objetos de consumo fornece, sim, insights interessantes – não em relação à suposta época original, mas à época na qual essas representações são formadas e consumidas (digo consumo não apenas na conotação comercial do termo, mas num sentido amplo, como por exemplo de fruição estética ou intelectual). E, talvez, digam respeito a um aspecto mais “intemporal”, por assim dizer, de nossa sociedade.

Pois, afinal, nostalgia não é novidade. Não é de hoje que idealizamos eras passadas, que romantizamos períodos históricos – e que participamos (como autores, atores ou audiência) de eventos que recriam esses períodos, como por exemplo novelas de época, romances históricos, bailes à fantasia, parques temáticos, e – por que não dizer – turismo. Quem não se lembra do sucesso de Anos Dourados, Anos Rebeldes e Que Rei Sou Eu? – para não falar da Escrava Isaura...

Incluo as fantasias futuristas nessa tendência nostálgica – consistem no mesmo processo de objetificação e idealização histórica. Quem duvidar deve examinar produções futuristas de épocas diferentes. 2001, Alphaville e Laranja Mecânica têm características estéticas muito distintas, por exemplo, de Gattaca, filmado vinte anos depois.

O “futuro” dessas produções, é claro, nos fala sobre o seu presente – não apenas sobre o seu design ou preferências de vestuário. Fala sobre angústias sociais, políticas, morais, psicológicas. Alphaville era o pesadelo do totalitarismo, aceso durante a Guerra Fria. 1984, livro que George Orwell escreveu logo depois da Segunda Guerra, reconstrói as angústias do fascismo e da guerra total, ao mesmo tempo evocando a escassez material do pós-guerra em que Orwell vivia. Já o asséptico Gattaca, com os eugênicos protagonistas Ethan Hawke, Uma Thurman e Jude Law, preocupa-se com controle e manipulação genética, terrores da biotecnologia – bem na época da clonagem de ovelhas e da decodificação do DNA...

Disneylândia realçada

Com esses exemplos quero indicar que tanto o passado quanto o futuro nos servem para tratar de angústias presentes, de preocupações relevantes para o nosso tempo – bem, às vezes são preocupações mais duradouras, que vêm do passado, mas que continuam significativas, como o nazismo. Até aí, nada de ruim. O esquisito é quando, em vez de mergulhar com coragem nessas viagens pelo tempo, nos contentamos com o lugar-comum, o pacote barato feito de estereótipos e simplificações. E, quando digo isso, não ponho a responsabilidade somente no “objeto”. Não é um problema de autenticidade – não apenas. A chave está no modo como tratamos o objeto, nossa recepção crítica, nosso engajamento. Exemplo: claro que as reconstruções de monumentos europeus no Epcot Center são uma encenação grosseira, falsificada. Mas nada garante que uma visita ao original produza uma experiência autêntica. Muita gente trata a Europa, ou as pirâmides de Chichen Itzá (México), como uma Disneylândia realçada, objeto de raso consumo estético e sensorial... (Aliás, ouvi dizer que tratam até Auschwitz como parque temático – mas isso é assunto para outra coluna...)

Enfim, o tal Show dos Anos 80 estreou. Na primeira vez, foi engraçado ver imagens e referências da “minha” década. Os topetes. As ombreiras. Os blazers tipo Miami Vice. As leggings rosa-choque. O Duran Duran. Depois a novidade passou. O programa tem cheiro de déjà-vu – mas não é por falar de uma década passada. É por repetir a mesma fórmula. É porque seus personagens, sua trama, seus diálogos são iguais aos do Show dos Anos 70 (que é a versão comédia de Dawson’s Creek).

Fazer o quê? Já me dou por satisfeita pelo fato de as calças semi-baggy não terem voltado às vitrines (alguns estilistas, em temporadas recentes, até tentaram reviver modas dos anos 80, como as mangas-morcego e o sportswear, mas, fora os ombros de um lado só, as tentativas não pegaram). E, enquanto as modas e as décadas vão sendo recicladas cada vez mais rapidamente, eu fico aqui esperando o próximo, o Show dos Anos 90, o filme que vai transformar “ontem” em peça de museu – ou melhor, em peça de leilão.

Daniela Sandler
Rochester, 6/2/2002

 

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