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Sexta-feira, 8/2/2002
a era que se encerra
Rafael Azevedo

Um viva para Paulo Francis, morto no dia 4 de fevereiro de há já não sei mais nem quantos anos, na maior perda intelectual de minha geração. É completa e inteiramente insubstituível, já o era em seu tempo, e será cada vez mais nesta época em que o jornalismo deste país se divide entre o servilismo bundão e a "imparcialidade" rasteira dos Dines da vida e seus "Observatórios"... que esteja bem, se estiver em algum lugar.

Sua opinião, seus comentários, sua postura, seu modo de ver e comentar o mundo, me fazem falta a cada dia - e imagino que também o façam a qualquer um que, mesmo discordando do que ele dizia, se interessava por ver o que tinha a dizer alguém com visão crítica do mundo, com uma cultura invejável e imensa sensibilidade de enxergar por entre os fatos e ditos. Ainda assim, acredito que discordar do que ele dizia denota estreiteza intelectual; é querer tapar o sol com o penico. Paulo Francis via a realidade, enxergava o mundo como poucos, no mundo. Como pouquíssimos no Brasil. Requiem æternam dona eis, Domine.



É inacreditável...
"O horror, o horror!" Mais uma vez exclamo, enfaticamente, empertigado: a humanidade não tem jeito. Desta vez, a gota d'água que mais uma vez transbordou o copo foi uma série de matérias que vi em antigos jornais brasileiros sobre um certo César (Ave César, li no título de uma delas) escultor francês (ex-pintor de parede, chofer, padeiro, e homeless em Marselha) responsável pela estatueta do prêmio que leva seu nome, o "Oscar do cinema francês", como se diz na imprensa. De repente, uma foto do tal sujeito segurando sobre sua cabeça a tal estatueta - imagem das mais emblemáticas e elucidativas do filistinismo charlatão tão característico do meio artístico em nossos tempos. Ao lado, fotos de suas esculturas baseadas em formas humanas, como um gigantesco dedo de bronze. César considerava Picasso (e ele próprio) embustes. Cinquenta por cento de acerto, meu chapa... Sou forçado a reproduzir nas mesmas letras a matéria dum babaquara publicada no Estadão; nada que eu fale pode ser tão engraçado ou demonstrar de maneira tão ilustrada a inesgotável burrice humana. A matéria é quase tão boa quanto o melhor de Woody Allen ou Monty Python:
"Ninguém discute que um automóvel apanhado pelas garras de uma máquina de empacotar sucata possa virar obra de arte. Chamberlain (Nota Minha: whoddafuck?) também fez arte com carros destruídos em acidentes. Mas, para manter a fama de mau, César e Arman (N. M.: ! - mais um picareta, presumo) teriam de fazer algo mais do que colecionar utensílios de cozinha ou se apropriar da máquina industrial. Acumular material reciclado ou objetos como colheres é também uma mania de doentes mentais (Bispo do Rosário construiu sua obra com isso). Por que a coleção de colheres de Arman viraria arte e a dos loucos do hospício apenas uma "mania"? (...) A grande contribuição de César para a história da arte veio mesmo com o poliuretano expansivo (N.M.: !!), em que explorou o material até o limite máximo da deformação. Queria perder o controle sobre a forma, criar uma escultura efêmera. César levantava uma dúvida sobre a viabilidade de afirmar a forma num mundo em desintegração - moral, inclusive - depois da bomba de Hiroshima. A matéria o levou a um estado de exaltação só experimentado com as mulheres, que adorou como a lataria de um carro. Ou quase. (N.M.: triple !) 'Com a matéria é possível falar sozinho sem medo do ridículo', observou o escultor. Ave César." Genial! Ou não?



Os Bach.
Se alguém tem alguma dúvida quanto à validade e utilidade de uma boa educação à formação de uma pessoa - ao menos em seu gênio artístico - recomendo a audição de alguma obra de autoria dos filhos de Bach. Suas composições, raramente ou nunca tocada nas salas de concertos em nosso país, apresentam sempre um toque de brilhantismo que somente poderia ter quem foi educado, desde sua infância, por ninguém menos que Johann Sebastian Bach himself; a maioria deles nem chegou a compositores de primeira linha, e apesar disso compuseram excelentes obras; é o caso de Wilhelm Friedemann Bach (as peças que Bach fez a partir de exercícios que utilizava para auxiliá-lo em seu treinamento no cravo são espetaculares) e Johann Christoph Friedrich Bach (cuja sonata para piano, flauta e violino em dó maior ouvi com Isaac Stern, espetacular); e outros, como Carl Philipp Emanuel Bach e Johann Christian Bach, apesar de também pouco tocados nesta nossa época tão burra, tiveram um papel significante na evolução desta arte - e pode se perceber isto ao ouvi-los. O concerto para cravo e cordas de Emanuel Bach é uma obra-prima, e seu gênio melódico fica evidente desde as primeiras notas. Já de Johann Christian ouvi duas sinfonias, Op.9 No.2 e Op.18 No.4 - absolutamente fascinantes, e o segundo movimento da primeira que citei, em especial, parece ter se encaixado perfeitamente com alguma coisa dentro de mim - é algo que Mozart se orgulharia de ter feito, tenho certeza. Ambos mantiveram com dignidade o valor conferido pelo sobrenome que portaram, e toda a tradição musical dele - a família Bach exibe uma linhagem de músicos (Bach já foi sinônimo de músico em alemão) que remonta a um certo Veit Bach, da Hungria, que pelos idos de 1500 tocava alaúde e chegou a ser Stadtpfeifer da cidade alemã de Gotha. Estes dois foram de longe os filhos de Sebastian Bach que mais se destacaram no métier, ambos músicos importantes de seu tempo: Johann Christian, filho mais novo de Sebastian e pupilo de Carl Philipp, foi amigo de Mozart; conta-se que, certa vez, com o pequeno Wolfgang sentado sobre seu joelho, ficaram a improvisar num órgão diversas variações a quatro mãos; viveu na Itália e na Inglaterra, e foi conhecido como "Giovanni Bach" e "the english Bach"; não obstante, terminou por morrer em relativa pobreza e obscuridade. Já Carl Philipp Emanuel, um dos filhos mais velhos de Bach (o segundo da primeira mulher a sobreviver) foi ainda mais alto; serviu a Frederico o Grande, na corte da Prússia - com quem não consta ter mantido relação, digamos, senão pouco afetuosa, já que eles conviveram por vinte anos ou mais, pelo menos tempestuosa. Certa ocasião, ao ouvir uma execução de Frederico, na flauta, - instrumento que o monarca supostamente dominava- de uma peça sua numa cadência que não lhe agradava, teria exclamado, para comoção geral: "que ritmo!"

Assim como eles, todos os outros exemplos de grandes compositores tiveram, desde o início de suas vidas, uma educação musical, dada por uma pessoa que nutria paixão pela música igual ou talvez maior que seus filhos vieram a ter, ainda que estes tenham acabado por tornar-se superiores aos pais em talento. Mozart aprendeu tudo que sabia com seu pai, Leopold Mozart, inclusive, acima de tudo, a amar a música; seu pai compunha obras como o a Sinfonia dos Brinquedos e a Sinfonia da Caccia que seguramente atraíram o jovem prodígio com seu talento melódico e seu apelo infantil, divertindo-o ao mesmo tempo em que o arregimentavam a serviço da música que tanto o arrebatava. O pai de Bach foi um músico na cidade de Eisenach, e toda sua família praticamente havia ocupado cargos semelhantes, como já falei; o pai de Beethoven foi um tenor da corte e professor de música de talento moderado, em Bonn, e seu avô, Ludwig van Beethoven, Kapellmeister da Corte no eleitorado de Köln; o pai de Wagner foi escrivão de polícia, apesar de sua paixão pelo teatro; morreu cedo. Mas vários de seus irmãos foram cantores de ópera. Os exemplos são infindáveis.



Les Misanthropes
"A misantropia é uma terrível moléstia; ela nos faz ver as coisas tais como são."
- Abade Mongault

"Os que mais desprezam os misantropos são justamente aqueles por cuja causa os misantropos existem."
- J. L. A. Commerson

"A misantropia é a sátira da espécie humana."
- Marquês de Marica

Rafael Azevedo
São Paulo, 8/2/2002

 

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