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Sexta-feira, 5/12/2014 O livro do Natal Marta Barcellos Na fila da fisioterapia, a cena incomum: uma senhora, em pé, em vez de checar o celular como todo mundo, está lendo um livro. Ela carrega a própria bolsa, uma sacola e deve ter alguma limitação física - ou não estaria naquela fila -, e mesmo assim se equilibra para manter o livro parrudo aberto. Fácil de identificar, pela capa vermelha. - Terminei ontem - eu a catuco e sorrio. Na verdade tinha terminado anteontem. Ela sorri de volta: - E gostou? Ninguém nunca vai me flagrar falando 'mal' de Chico Buarque. Como a pergunta se repetirá nos próximos dias, pois o lançamento acaba de acontecer, aproveito para treinar a resposta. É preciso muito cuidado com as palavras, para não ser confundida com uma "anti-Chico". Como na época das eleições, quando eu dizia que ia votar em Marina e me confundiam com uma antipetista. Não! - Gostei sim, mas o último dele, Leite derramado, é melhor. E este aqui também - digo, mostrando o McEwan já adiantado - Conhece este escritor? Ela não se interessa. Quer falar sobre Chico Buarque. - Comprei outros dois desses para dar de presente. Acho que vai ser o livro do Natal, não? Bem, era o máximo que eu ia conseguir de "papo literário" na fisioterapia. Já estou na décima-quarta sessão de tens e ultrassom no joelho, e não consigo entender o que se passa no subsolo onde estão montados os equipamentos que parecem formar uma sala de tortura. Depois da fila, na recepção, é para lá que os estropiados são encaminhados, quando piscam suas respectivas senhas no painel preto e verde. No buraco, digo, no subsolo, não há revistas como na sala de cima, e o celular não pega. Não pega mesmo, totalmente "sem serviço". De vez em quando, algum novato tenta em vão, observado com pena pelos demais. O que você faria se soubesse que lhe aguardam pelo menos dez sessões de pelo menos meia hora (o caso de alguém menos estropiado, nas minhas contas) em um lugar sem qualquer distração? Pois é, mas eu era a única a sacar o meu livro da bolsa, sempre. Daí a minha animação com a tal senhora lendo o Chico em pé - mas apenas porque aquele seria o "livro do Natal". Não costumo ter tanta pressa para ler um lançamento que certamente vai bombar. Em geral, leio atrasada, ou, dependendo, espero por algumas opiniões/resenhas respeitáveis para saber se vale mesmo a pena. Tanto livro "antigo" para ler, ou reler... Mas, no caso do novo Chico, eu leria de qualquer forma, porque realmente adorei Leite derramado (e também Budapeste). Acabei comprando O irmão alemão de primeira hora, e lendo rápido, por vários motivos: o tempo disponível na fisioterapia, a fase mais tranquila de trabalho e também a expectativa de outros lançamentos de fim de ano que iriam congestionar a minha cabeceira. Além do novo McEwan (A balada de Adam Henry), autor que já considero um "clássico pessoal", ando especialmente excitada com a ideia de ler Graça infinita, de David Foster Wallace, depois do impacto que me causou Ficando longe do fato de já estar meio longe de tudo. Voltando ao Chico, foi como se eu também tivesse lido o livro em pé, embalada. Lia enquanto eram publicadas as primeiras reportagens e resenhas, e me sentia tendo uma experiência de leitura praticamente coletiva. Estava dividida entre a vontade de espiar os textos e comentários, para "conversar" mentalmente sobre a minha própria experiência, e o temor de ouvir spoilers importantes em meio ao burburinho. Eu disse burburinho? Nada disso, parecia bulício mesmo: todo mundo tinha corrido para ler o Chico, a cidade inteira, o país inteiro; parecia que eu estava dentro daqueles filmes que fetichizam o ofício do escritor, em que o livro recém publicado repercute mais que final de reality show ou série americana. Entretanto, por mais apressada que eu fosse, dificilmente conseguiria fugir do spoiler que tira um bocado da graça do livro. Como todo mundo já sabe (quase todo mundo, vá lá), o irmão alemão existiu de verdade, em carne e osso. E como todo mundo (agora é todo mundo mesmo) conhece Chico Buarque, ninguém vai conseguir ler o romance sem a curiosidade/chateação de tentar identificar o que deve ou não ser "real" na narrativa. Se isso faz parte do jogo da chamada autoficção, o jeito é se render. Então intercalei a leitura do romance com olhadelas na história "real" que pipocava em volta (mas eu poderia também ter fuxicado as notas do fim do livro). Abandonada a discussão sobre autoficção (ufa), resta ainda o principal. A parte mais deliciosa de ser leitor (e não crítico, ufa de novo): poder se apropriar da narrativa e fazer dela o que bem se entende. Pois bem, no "meu" novo livro do Chico, a narrativa corre solta e sofisticada, menos do que em Leite derramado, mas o suficiente para não fazer sucesso na fisioterapia. Sei que muitos leitores especializados se regozijaram, e até se paralisaram ante às estantes, da casa-biblioteca. Mas eu fiquei com medo das baratas. Cheguei a sonhar com elas. Tropecei numa abrupta passagem do tempo, mas levantei e recuperei o fôlego. Afinal, era o Chico. E, por fim, o meu fascínio de leitora foi todo para o outro irmão, o que não era alemão. Pensando bem, no "meu novo livro do Chico", Francisco e Domingos, Ciccio e Mimmo, são a mesma pessoa. E não se fala mais nisso. Marta Barcellos |
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