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Domingo, 25/3/2001 Ocidente de tocaia, Oriente escondido Rafael Lima Numa das primeiras cenas de O Tigre e o Dragão, acho que a primeira, o personagem de Chow Yun Fat, Li Mu Bei, comenta com uma amiga que tinha voltado de sua meditação nas montanhas por causa de um mau pressentimento, que o impedia de continuar por lá. Embora trivial, essa cena é tremendamente importante para entender a maneira que Ang Lee escolheu para dirigir o filme e o porquê de seu sucesso nos EUA. A questão é: quantas vezes algum amigo seu já veio se queixar de problemas espirituais? Algumas, poderá ser uma resposta razoável. Existe essa tradição ocidental de verbalizar os sentimentos, de expôr o interior. O incomum reside no fato que estamos assistindo um filme de temática e atores orientais, falado em mandarim, e no entanto o personagem fala o que está sentindo. Quantas vezes no filme Hana Bi, por exemplo, de Takeshi Kitano, alguém explicita verbalmente o que está sentindo? Raras, se existentes, ao longo de 2 horas de película. Ao selecionar contos tradicionais chineses para construir o roteiro de Crouching Tiger, Hidden Dragon, Ang Lee confessou que foi preciso fazer algumas adaptações para tornar o filme mais acessível ao público ocidental. Assim, quando entra-se no cinema para ver a história do roubo da espada Destino Verde, do palácio de Sir Te, quando Shu Lin tinha levado como presente de Li Mu Bei, deve-se preparar para surpresas e decepções. De certa maneira, pode-se dizer que ao tomar aquela direção Lee abriu mão de fazer um épico oriental no melhor estilo Akira Kurosawa, com todo aquele timming e silêncio característicos dos filmes de samurai. Ainda que estejam ali questões caras às narrativas orientais, a qualidade fabular da história, códigos de honra, tradição, artes marciais, não é possível sentir a mesma estranheza que de um Hana Bi ao assistir O Tigre e o Dragão. Existe uma desconfortável familiaridade no ritmo narrativo, nas caracterizações, nos diálogos, no maniqueísmo bem/mal. Desconfortável porque apesar de apesar de estarmos lidando com atores de olhos puxados, vestindo quimonos e lutando com espadas a impressão nítida era a de estar vendo, em alguns momentos um faroeste. Quando a gang nômade de Lo ataca a caravana de Jen no deserto, só falta usarem cocares e gritarem Hooooooka-Hey! Até o nome Nuvem Escura lembra o de um guerreiro pele-vermelha. Mas Lee tem mais de uma carta na manga, como já provou em dois excelentes filmes anteriores, Tempestade no Gelo e Razão e Sensibilidade, e afasta a hipótese da mera macumba para turista, de ter empacotado sua tradição e cultura para presente com o objetivo de conquistar Hollywood. Não há risco de vê-lo andando no encosto das cadeiras ou forçando inglês com sotaque ao subir no palco para receber o Oscar de Filme Estrangeiro, para o qual é franco-favorito. Se não conseguiu construir um grande filme no melhor estilo oriental, mostrou mais uma vez que talvez não haja ninguém melhor do que ele para encontrar o perfeito equilíbrio ocidente/oriente entre as linguagens cinematográficas, e é uma maravilha ver seu cuidado com detalhes, figurinos ou uma trilha sonora em tambores e flautas que cria o ambiente perfeito para as espetaculares cenas de ação, de que todo mundo já falou. Ver Crouching Tiger, Hidden Dragon é mais ou menos como ler uma ótima tradução: tem diversos atrativos, talvez um ou outro a mais do que a obra original, mas seu sabor verdadeiro permanece escondido, como o dragão do título - uma metáfora para o conhecimento não revelado, para os mistérios não decifrados. Talvez isso não seja um problema, talvez seja o caso de se tecer elogios à tradução, que amplia o alcance da obra original a um custo pequeno, talvez seja o caso de fazer uma análise em termos absolutos, ignorando as referências pregressas - em todos esses quesitos há qualidade no filme de Lee. Mas em nenhuma delas ele consegue chegar ao ápice. Ouvi dizer que ele vai dirigir um filme do Incrível Hulk. Vou ficar de tocaia. Rafael Lima |
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