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Quarta-feira, 25/2/2015 Viagem a 1968: Tropeços e Desventuras (2) Marilia Mota Silva (continuação de...) Minha cabeça latejava de tensão e cansaço, quando cheguei em casa mas, para minha surpresa, fui recebida sem combate. Graças às freiras do colégio que, sem saber, me prestaram uma ajuda inestimável. Tinham visitado meus pais, na véspera, levando a notícia de minha aprovação. Sabiam de mim mais do que eu; disseram que eu tinha passado em terceiro lugar e "sua filha é um orgulho para o nosso Colégio". Diante disso, mamãe não tentou mais me impedir. Com o coração em luto, como dizia, preparou-me um pequeno enxoval e me acompanhou até Belo Horizonte. Assim que chegamos, ela começou a se lamentar com a dona da pensão. Falou de seu coração de mãe, de seus maus pressentimentos e fez-lhe recomendações: ela que olhasse por mim, uma menina ainda, sem noção do que é a vida! Tão mergulhada em si não percebia que a mulherzinha fervia de irritação. No dia seguinte mamãe foi embora. Falou mais uma vez sobre meu suicídio moral, do quanto ela sofria, e que eu voltasse com ela, filha não deixa o lar, não deixa os pais, não anda sozinha pelo mundo. Me arrebentava por dentro vê-la partir sofrendo tanto. Mas não tinha escolha, sufocaria se voltasse. Deram-me um quarto no segundo andar, grande e arejado; a casa era toda branca, com varandas floridas e boa localização. Mas teria que ser morada provisória. Assim que me situasse melhor, procuraria um lugar mais adequado a meus recursos. * * * A Semana dos Calouros durou uns dez dias. Fomos recebidos com uma programação de filmes, show e palestras. Filmes dos deuses da época, Glauber Rocha, Godard, Buñuel, Fellini, Ruy Guerra, Orson Welles -- Cidadão Kane, naturalmente. Pouco entendia os filmes e muito menos porque eram tão maravilhosos. Apenas Ingmar Bergman me atingiu sem necessidade de explicações acadêmicas. Foi como encontrar um irmão, uma alma gêmea. O show de Juca Chaves foi outro ponto alto da semana. No segundo sábado, fui com Irene ao bailinho - dizia-se "hora-dançante" - na Escola de Direito, que ficava a poucas quadras da minha casa. Por volta das dez, depois de dançar bastante, estava pronta para ir pra casa, mas Irene quis ficar, envolvida que estava na conversa com um estudante de Direito - com quem está casada até hoje. Um rapaz com quem tinha dançado se ofereceu para me acompanhar quando eu saía. Aceitei, seria mais seguro, embora fosse perto e as ruas iluminadas. Chegando, agradeci, e ele avançou na minha direção. Me afastei, surpreendida . Queria me beijar o sujeito, assim, sem mais nem menos, mal tínhamos dançado! -- Nãão! --Posso subir, então? -- Subir pra onde? -- O seu quarto...? --- São Benedito! Por que você subiria pra meu quarto? Nem mora aqui nem nada! O jeito dele cheio de olhares insinuantes me confundia, repugnava. Deixei-o falando sozinho. -- Por favor, espera um pouco! Você não sabe mesmo o que é esta casa? Isso aqui é um rendez-vous! -- Rendez-vous? -- Tentei me lembrar do francês aprendido no colégio. --É uma casa de encontros! -- Ele disse num tom mais baixo, como se falasse "é uma casa mal assombrada"! -- É uma pensão -- eu disse. -- Eles têm hóspedes e também servem refeições para pessoas de fora. -- Está bem, mas converse com suas amigas, com seus colegas, pergunte pra eles. E se mude daqui o mais depressa possível, não é lugar pra você, pode acreditar em mim. Eu já tinha ouvido falar em bairros da luz vermelha, já tinha ouvido falar em mulheres-da-vida, já tinha cansado de ouvir falar puta, prostituta, filhos-da-puta, mas tudo isso pertencia a um universo mítico, nada a ver com a realidade. E nunca tinha ouvido falar em rendez-vous!. A pensão era uma casa bonita com jardins na frente, um murinho branco, arcos e varandas. Nada aconteceria ali, era impossível, e não havia luz vermelha em lugar nenhum. O sujeito estava mal informado. Mesmo assim tentei descobrir o que seria exatamente um rendez-vous. Comentava com um e outro, forjando um sorrisinho ambíguo, que alguém tinha me dito que eu morava num rendez-vous! Não consegui uma resposta clara, acho que ninguém sabia com certeza, nem mesmo Irene que, na época, era a pessoa mais bem informada que eu conhecia. Dirigia há tempos, datilografava! Num outro dia, a moradora de um quarto vizinho ao meu, talvez tendo reparado no meu modesto guarda-roupa, resolveu me exibir o dela. Dava gosto ver seu orgulho diante das portas abertas de seu armário! Disse-me para escolher o que quisesse, ela tinha muito, tinha malas cheias, aquilo era só uma parte. Menti que achava tudo lindo - tops e saias extravagantes, com muita cor, muito brilho e um cheiro ruim, indefinível - mas eu preferia jeans e camiseta, tudo o mais prático possível. Ela ficou desapontada mas, no domingo à tarde, vendo-me sozinha, me chamou pra sair, talvez, quem sabe, um cineminha. Não tínhamos andado dois quarteirões, eu toda prosa, quando ela se livrou de mim. --Melhor você ir embora, vai. -- Por quê? -- Vai, você é menina ainda e eu prefiro andar sozinha. Voltei desconsolada, sem saber que ofensa tinha cometido. * * * Menos de três semanas em Belo Horizonte, mamãe me manda uma caixa com lombinho recheado com ameixas, biscoitinhos de polvilho, bolo de frutas. Aproveitou a viagem de um vizinho à capital e teve a ideia de encarregá-lo de trazer-me a encomenda. Pobre rapaz, vindo de ônibus, com aquele cheiro de assado! Agradeci e me desculpei como pude. A dona da pensão não permitia que se usasse a geladeira, de maneira que levei a caixa para o quarto. Pedi ao Rubens, era o nome dele, que me esperasse um instante, queria mandar um bilhete para mamãe, pediria que não fizesse mais isso, não precisava. Eu comia no bandejão da faculdade, tinha a vida organizada. Levei a caixa para o quarto, peguei papel, caneta e envelope e voltei para escrever perto dele, para não deixá-lo esperar sozinho. Foi só um instante e ele já não estava. Perguntei à dona da pensão, e ela apontou a rua: já foi embora. Corri atrás, ele ia longe na calçada. Consegui alcançá-lo. -- O que foi que aconteceu? Só fui buscar papel e caneta. Você ficou com raiva! Ele fez o gesto de quem empurra alguém pra longe. O rosto embrutecido, fechado. Fiquei assustadíssima. De novo não entendia nada, e dessa vez era um vizinho, irmão mais velho da minha amiga Terezinha. Implorei para que me dissesse o que eu tinha feito, qual era a razão da raiva. Finalmente, me olhando com desprezo, ele explicou. -- A dona da pensão disse que cada dia você chega com um homem diferente e que não é problema dela, que só não quer saber de mãe nenhuma chorando na frente dela. Protestei, o rosto queimando de indignação: -- Ela mentiu, não é nada disso! Ele virou a cara e atravessou a rua. Dobrou a primeira esquina quase correndo. Voltei arrasada: ele preferiu acreditar em uma estranha embora me conhecesse desde pequena; recusou-se a me ouvir e condenou-me sem hesitação! Que tipo desprezível! Entrei em casa e confrontei a dona da pensão. Por quê? Por que tinha feito aquilo? Ela, olhinhos de porco de pestanas duras, as bochechas gordas, a boquinha arrogante, fazendo bico: -- Não é problema meu! Imagina me pedir pra tomar conta da filha. Só me faltava essa! E quando ia me afastando: -- Volta pra sua gente! É o melhor que você tem a fazer. Rubens contaria para minha mãe o que a dona da pensão tinha dito? Acordava à noite, transpirando, o coração aos saltos. Precisava sair dali, o quanto antes, mas para onde? Já tinha perguntado aos colegas se alguém sabia de algum lugar, e nada. Foi quando descobri o jornal. Um mundo, o Estado de Minas! Estava tudo ali, todos os assuntos de que eu ouvia falar: o país, o governo, a economia, a bolsa de valores! E os classificados, uma radiografia da cidade! Empregos, serviços, aluguéis de apartamentos, quartos, vagas. "Vagas para moças de fino trato". Achei um lugar para morar, uma dessas vagas. Ao lado do Parque Municipal, na Rua da Bahia, um apartamento de três quartos no 18º andar. A proprietária era Dona Júlia, uma velha forte, atarracada, olhos acesos, desconfiados. Sua filha, Terezinha, era o oposto. Um tipo bovino, de fala arrastada, fanhosa, teria entre 40 e 50 anos. Ela e a mãe usavam os dois quartos menores. Eu e as duas outras "moças de fino trato", que também estavam nos quarenta, dividíamos o quarto maior. Cada uma tinha uma cama estreitinha e um armário inglês, de duas portas, em frente à cama. A localização do prédio era ideal. Bem no centro, e com ponto de ônibus e trolley para a faculdade na calçada em frente. O trolley, um tipo de bonde elétrico, custava a metade do preço para estudante, com desconto extra para cupons comprados com antecedência. Lugar para morar, condução, o bandejão do almoço: a sobrevivência estava garantida, com despesas obrigatórias mínimas. Sendo frugal, o dinheiro duraria mais de quatro meses. Tempo bastante para conseguir emprego. Mas isso não seria tão simples. Todos pediam experiência prévia, datilografia e horário integral. Nenhum dos três eu tinha. Para vendedor, não havia exigências, mas não me via batendo de porta em porta, tentando persuadir alguém a comprar alguma coisa. Um deles, no entanto, me atraiu: oferecia duas semanas de treinamento para vendedores de fundos de investimento. Sem compromisso de contrato após o curso. Perfeito. Ao fim dos 15 dias, blue-chips, filhotes, dividendos,ações ordinárias, preferenciais, nominativas, o jargão todo não me era mais segredo. Cada conquista me fortalecia. No prédio, a primeira aluna me bateu à porta: queria aulas de inglês. Sem problema. Ela não sabia nada. Eu sabia o que tinha aprendido no colégio. The book is on the table. Presente, passado, frases negativas, interrogativas. Era suficiente. Confiante no futuro, cedi a uma extravagância que me cobriu de orgulho: comprei a pasta para livros que vendiam na faculdade, em que a palavra JORNALISMO, em letras garrafais, se impunha sem discrição nenhuma. De qualquer maneira, eu precisava de uma pasta. Um dia, chegando em casa, depois da aula, alguém me agarra o braço, como um torniquete, acima do cotovelo. Recuo assustada e olho a cara de quem me ataca daquele jeito. Já tinha visto aquele homem, era da minha cidade, mas não o conhecia, não sabia seu nome. -- Larga, o senhor tá louco? Ele rosnava esquisito, me olhava de cima pra baixo, como se tivesse nojo, enquanto continuava a me apertar o braço. -- Vim aqui pra jantar com você, demorei pra te encontrar, você mudou de endereço, vai jantar comigo hoje, fiz essa viagem só pra isso -- falava entredentes, nervoso, sufocado. -- Jantar? Por quê? -- Puxei com violência meu braço. Ele resmungava qualquer coisa ainda, e eu falei alto, sem me importar com gente passando de todo lado. -- O que o senhor está pensando, seu filho-da-puta? Eu vim pra cá pra estudar, aqui, minha pasta, Jornalismo, UFMG, tá vendo? Ordinário! Desclassificado! disse ainda, furiosa, retomando meu caminho. Não olhei para trás, nunca mais o vi. Rubens não contou para mamãe o que a dona da pensão da Rua Timbiras tinha dito, mas certamente espalhou na cidade. O velhote, um tipo magro, de pele emaciada, escura, resolveu enfrentar a viagem, certo de seus direitos de foder a menina. * * * Já me acostumava a receber o professor sentada, com um mero bom-dia, ou nem isso. No colégio, nos levantávamos quando a Irmã entrava: "Louvado Seja Nosso Senhor Jesus Cristo", ela dizia. E nós: "Para sempre seja louvado". Pois estava muito contente com esses novos hábitos, quando três rapazes entraram sem bater, interrompendo a aula, e tomaram o lugar do professor, que recuou para um canto, sério, deferente. Um deles, a camiseta preta colada, de manga curta dobrada, pôs o pé na carteira vazia em frente e começou a discursar: "Companheiros!" Falava com energia, suas palavras vibravam, coloridas como fogos de artifício: poder discricionário, arbitrariedade, burguesia, proletariado...magnífico! Assembleia às 11 horas no saguão. Quando saem, os colegas perguntam entre si: você vai? Não sei. Você vai? Eu vou, claro. Vou a tudo o que me aparece pela frente. Preciso me situar na nova vida. Pergunto muito. Minha ignorância choca as pessoas ou as deixa desconfortáveis, posso ver isso: irritação, censura, incredulidade. -- Por que eles dizem "abaixo a ditadura", você acha que estamos numa ditadura? -- Claro! Um governo ilegítimo! Você votou neles? Alguém votou? Isso eu podia entender. Eles não foram eleitos. Ilegítimo, sim. Mas era ditadura? Na minha cidade, nunca ouvi reclamação. Ao contrário: as greves, a bagunça nas capitais que o Repórter Esso mostrava, e o custo de vida, isso sim preocupava as pessoas, era assunto nas ruas, na igreja, na praça. E as eleições? Tinham votado no Jânio, não tinham? Jânio e sua vassoura! Tinha prometido varrer tudo de errado, todos os parasitas do país. E o povo caiu de amores por ele. Era um homem simples, diziam, que nem terno usava e comia sanduíche, tirado do bolso. Professor de Português. Ninguém melhor que um professor pra saber o que é direito e impor respeito. Com cara de maluco, é verdade, mas às vezes é preciso um maluco pra dar jeito nas coisas. Votaram em massa nele e olha no que deu. No colégio, me lembrava agora, houve missa em ação de graças: fomos convocadas a comparecer às sete horas da manhã, em uniforme de gala, na capela do Colégio. Suspensão de uma semana para quem faltasse. Nem precisava. Bem treinadas, obedecíamos sem questionar. Mas missas em ação-de-graças nunca eram improvisadas... No sermão, finalmente, a questão se esclareceu: dávamos graças a Deus por Ele ter livrado o Brasil, mais uma vez, das garras do comunismo ateu. Então era isso! Livres da obrigação, voltamos à rotina, indiferentes. Não sei se alguém levava a sério essa conversa toda sobre o perigo vermelho. Os vermelhos comiam criancinhas. Era como história de bicho-papão, de Joãozinho e Maria. * * * As aulas não me despertaram o interesse, apesar da dedicação dos professores. Eu tinha muito que aprender, e aquele enxuga-gelo era perda de tempo. E precisava de arranjar emprego. Aulas particulares não me garantiriam. Estágios em jornais, só a partir do segundo ano. Emprego em escritórios, meio-expediente, sem saber datilografia, estenografia, coisa nenhuma, podia esquecer. Resolvi procurar na faculdade. Percorri os oito andares sistematicamente. Ia às secretarias, entrava em cada porta que não estivesse trancada e pedia emprego, explicando minhas circunstâncias: só podia trabalhar à tarde e não sabia coisa nenhuma. Consegui. Na Faculdade de Educação, 5º andar. Eu teria que cuidar do escritório, atender ao telefone, datilografar telegramas, cartas, memorandos com várias cópias, usando papel carbono. A máquina de escrever era moderníssima, uma IBM de esfera com corretor. -- Quanto você precisa pra sobreviver?, o chefe me perguntou. Somei os 60,00 que pagava pela vaga, mais condução... -- Cem cruzeiros? Ele aceitou. Pagava do próprio bolso. Almoçávamos todos os dias, ele, eu, mais um funcionário, em restaurantes com toalhas brancas e rosas frescas em cada mesa. Ele tinha uma filha com o meu nome, dizia, e teve muita paciência com meu despreparo. Eu ficava sozinha no escritório a tarde toda, tinha tempo de refletir, escrever cartas para meus irmãos, falando-lhes do que andava aprendendo e como era a vida na capital. (continua aqui) Marilia Mota Silva |
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